Contrafactual

Não há muitas diferenças entre um pobre americano e um russo

Bom dia!

Esta semana, a “Contrafactual” tem apenas a secção “Contado não se acredita”, e explico porquê.

A minha ideia original era desmontar o mito da Rússia todo-poderosa, que ainda persiste, apesar das evidências: total fracasso militar perante um adversário mais pequeno, que faz lembrar o fracasso da URSS no Afeganistão; indicadores de saúde que revelam um país de terceiro mundo. Por exemplo, a esperança média de vida da Rússia está na posição 164.°, ao pé de países como o Togo, Cambodja, Bolívia, com uma média de 72.3 anos de vida média. O cenário torna-se ainda pior quando isolamos a esperança média de vida dos homens. Aí ficamos com uma ideia média de 65 anos; as mulheres russas vivem 76 anos. É a maior diferença na mortalidade por sexo do mundo. Um país com este nível de desesperança não pode ser um poder capaz de projetar força no exterior de forma continuada.

Mas, durante a pesquisa, começou a aparecer um dado que, à primeira, parecia inverosímil: a mortalidade nos EUA, sobretudo dos mais pobres. Um pobre americano, sobretudo das zonas mais isoladas (montanhas da Appalachia; delta do Mississipi), não é muito diferente de um russo neste ponto fundamental, saúde e esperança média de vida.

I. CONTADO NÃO SE ACREDITA

Morre-se demasiado e demasiado cedo nos EUA

No início do século, não havia diferenças de fundo entre EUA e outros países desenvolvidos no campo da esperança média de vida. Mas no espaço de uma geração muito mudou para pior. A esperança média de vida nos EUA está a baixar, ao contrário do que seria de esperar num país da OCDE. Estava perto dos 80 anos há pouco tempo e começou a baixar e agora está na casa dos 76/77, enquanto que os outros países mais ricos estão a caminhar no sentido dos 85. E a questão é que esta taxa é explicada pela morte de pessoas nos 20, 30, 40, 50, adultos ainda jovens. A causa fundamental é a morte por overdose, que tem já um terço das mortes acidentais. Estão morrer cerca de 100 mil americanos por ano de overdose, sobretudo de Fentanil, que veio substituir a terrível Oxy. É cinco vezes mais do que em 2000. Quando tomou posse em 2016, Trump mencionou a "carnificina americana", o que surpreendeu as elites das costas. "Ele está a falar do quê? De onde vem este pessimismo apocalíptico?", perguntaram entre o gozo e o espanto. Esse pessimismo advinha desta epidemia que dura há já uma geração histórica (25 anos), e que está a dizimar regiões associadas à velha classe de colarinho azul e à small town america.

Há aqui em jogo algo que até é pré-covid: as mortes de desespero, como lhe chamou o nobel da economia Angus Deaton; mortes geradas pelo capitalismo 2.0 da última geração. Estamos a falar de muita gente a morrer cedo demais num país alegadamente rico e próspero. Entre 1990 e 2017, a droga e o álcool foram responsáveis pela morte de 1.3 milhões de pessoas em idade laboral; o suicídio foi responsável por 570 mil mortos no mesmo período. Angus Deaton está a dizer isto há muito tempo: durante 200 anos, o capitalismo elevou da pobreza a população ocidental, mas durante os últimos 25 anos aconteceu o oposto; as deslocalizações e constantes inovações levaram à destruição da classe do colarinho azul, sobretudo no campo masculino, e isso teve consequências. Escrevi sobre isto antes mesmo da eleição de Trump: a traição do capitalismo contra a classe operária iria ter consequências sérias, uma devastação social que teria depois uma consubstanciação política num voto enraivecido. Infelizmente, não me enganei. As forças do capitalismo que melhoraram os indicadores económicos e sociais no mundo inteiro (um tema de uma Contrafactual anterior) tiveram um efeito colateral de destruição das camadas mais pobres e colarinho azul do ocidente. E, sem surpresa, essas zonas têm votado na força que percepcionam como a mais amiga dos mais pobres e do “working man”: a extrema-direita ou a direita populista, que substituiu aqui os velhos partidos comunistas e outras forças de esquerda.

O historiador Niall Ferguson, um obcecado desde sempre pelas estatísticas económicas e sociais, diz-nos que um pobre americano não tem uma vida similar a um pobre do Japão ou da Suíça. Diz-nos que na Suíça e Japão, os mais pobres (os 20% mais pobres, o bottom percentile) vivem até aos 60 e nos EUA estão a morrer nos 41. Eu não consigo perceber onde é que ele foi buscar este dado; este e outros; tal como não percebo como é que pode comparar os problemas atuais dos EUA com a URSS em decadência. É um argumento que incorre no vício que aqui critico todas as semanas: a mania do apocalipse, como salienta Jonah Goldberg.

Seja como for, passa-se algo muito sério.

A comparação certa não é dizer que os EUA de 2024 são como a URSS de 1985, mas sim dizer que os números dos pobres americanos não são muito diferentes da sociedade russa como um todo, e que de facto os 20% mais pobres dos EUA têm sido esquecidos quer pela direita do mercado quer pela esquerda woke. A esperança de vida de um homem pobre nos EUA pode cair até aos 72 anos (um nível russo); um homem rico nos EUA pode chegar aos 87 anos; é uma brutal diferença de 15 anos.

A mortalidade infantil nos EUA é a mais alta do ocidente. É perigoso ser mãe pobre nos EUA, é perigoso ser um bebé pobre nos EUA. A mortalidade infantil ronda os 5,4 mortos em 1000 (um dado já de si preocupante), mas no Delta do Mississipi ou das montanhas da Appalachia os números sobem para 13 em 1000.

(Só uma curiosidade: os EUA têm agora a posição que foi durante décadas de Portugal: o país ocidental com a taxa de mortalidade infantil mais alta - carreguem no play deste gráfico que começa no ano 1949).

Claro que em cima destas mortes que resultam do desespero da pobreza de terceiro mundo dentro do país mais rico, temos ainda de adicionar as mortes provocada pelas armas epela obesidade, duas características que afastam mais uma vez os EUA do resto da OCDE. O que mostra como a cultura de um país conta. Há cem anos, os EUA eram o país onde mais se morria devido ao tabaco, e foi assim até aos anos 80. Agora a América é um dos países onde a morte provocada pelo tabaco é mais baixa. Porquê? Porque levou a cabo uma campanha cultural para impor o fim desse hábito. Porque é que a América não consegue fazer algo parecido na alimentação saudável ou no campo das armas?

Se a Rússia não tem poder para se projetar no exterior, o que fica claro destes números americanos é que a América se calhar já não tem a capacidade para ser o grande regulador da ordem internacional; é uma sociedade com demasiadas fraquezas para projetar poder como no passado. Talvez tenhamos chegado a um ponto em que nenhum dos grandes poderes está numa posição de força (China também está cheia de maleitas) e isso é um problema. A I Guerra Mundial começou devido à fraqueza de um império decadente, o Império austríaco. A força da Alemanha aparece numa segunda quota de razões. Potências em declínio são mais assustadoras do que potências em ascensão. A China esteve em ascensão décadas a fio; desde 1979, ano em que eu nasci. E nunca causou uma guerra durante meio século de ascensão. O problema vai ser agora: como é que Pequim vai gerir os seus problemas internos e a sua relativa decadência externa?

II. A LENTE DA ARTE

Não se esqueçam da pobreza, p.f.

Sobre as mortes de desespero provocadas pelo capitalismo dos últimos 25 anos, podemos ler muita coisa. Em França, devemos ler os romances de Edouard Louis e a memória de Didier Eribon. Os romances de Louis sobre a ex-classe operária francesa fazem lembrar os filmes de Ken Loach sobre a ex-classe operária inglesa, como "I, Daniel Blake". Não por acaso, escreveram um livro a meias. Nos EUA, "Hillbilly Elegy" é incontornável, tal como "Invisible Child". Da Escócia chega "Poverty Safari", e da Inglaterra "Chavs".

Até para a semana!

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