Bom dia, caro leitor.
A direita reacionária, o espelho da esquerda woke, está a reforçar a alegada agenda pró-Vida. Em Portugal, pessoas ligadas à AD tentaram ressuscitar o assunto do aborto, e logo após as eleições foi lançado aquele polémico livro anti-casamento gay, anti-feminismo, anti-aborto, anti adoção de crianças por casais homossexuais. Esta foi uma movimentação portuguesa claramente articulada com este movimento à escala ocidental. Os exemplos desta movimentação reacionária, que procura reverter a história dos últimos 60 anos, aparecem todos os dias.
No início deste mês, no Congresso americano, o GOP (partido republicano) votou contra o direito à contracepção. Há dois anos, quando ajudou a abolir o Roe vs. Wade no Supremo, o juiz Clarence Thomas deu a entender que o Supremo poderia no futuro pôr em causa precisamente práticas como o casamento homossexual e a contracepção. Proibir a contracepção? O que se segue? A masturbação, porque“todo o esperma é sagrado”? Não duvidem, o radicalismo deste nacionalismo cristão de raiz apocalíptica vai nesse sentido. Voltamos assim de novo à incompreensão da Bíblia. O episódio de Onã (de onde deriva a palavra “onanismo) não está na Bíblia para condenar a masturbação ou qualquer outro alegado pecado sexual, mas sim para condenar a cobardia moral de Onã perante um dever familiar. Nos tempos bíblicos, as viúvas e os órfãos eram as pessoas mais desprotegidas. Nesse sentido, se um irmão morresse deixando uma viúva, o dever do outro irmão era casar e ter filhos com a cunhada viúva para assim protegê-la. É esta a moral do episódio (Gn 38, 6-9). Não é um puritanismo sexual, é um conto moral sobre cobardia e dever. Ele, Onã, tem sexo com ela, Tamar, mas na hora h “derrama sémen no chão”. Ou seja, não quer ter mais filhos, não quer assumir a proteção da sua família alargada e da memória do seu irmão. A história não é sobre prazer sexual a sós. Da mesma forma, a história de Lot em Sodoma (Gn 19) não é uma condenação da homossexualidade, é uma condenação da violência sexual. O movimento pró-vida precisava de uma catequese para adultos.
I. FACTO DO CONTRA
A direita da Vida acaba por odiar vidas concretas (e às vezes até ama a morte)
Esta direita da Vida tem um moralismo muito específico, faz lembrar a obsessão da velha esquerda com a Revolução: julga-se dona da Vida, só que esta Vida é apenas discursiva e abstrata e, em consequência, despreza vidas concretas. É por isso que o movimento "pró-Vida", como salienta Charles Sykes, perdeu qualquer significado: é apenas uma password para um desejo de controlo moralista sobre a sexualidade dos outros, sobre as mulheres, sobretudo. E é ainda uma desculpa para um desejo punitivo e puritano, talvez apocalíptico até, que vê na morte algo redentor.
A lista que comprova a deslegitimação de vidas reais e concretas em nome dessa Vida perfeita e abstrata é extensa.
Por exemplo, este movimento está a atacar as técnicas de reprodução assistida, sobretudo IVF (in vitro fertilization). No Alabama, o Supremo local considerou em Fevereiro que os embriões congelados são basicamente crianças, "crianças extrauterinas". Como assim são seres humanos? Vão à creche ou à escola? Se a eletricidade falhar num cataclismo e os embriões morrerem, o governador é acusado de genocídio? Não, não uso a palavra para fazer ironia ou piada. Se a esquerda radical woke usa a palavra “genocídio” de forma errada no contexto de Gaza devido ao seu brutal fanatismo anti-semita, esta direita reacionária também usa palavras como “genocídio” ou "homicídio" para descrever o direito ao aborto e, neste caso, as técnicas de reprodução assistida. Sim, é verdade que o casal ou a mãe (há mulheres que recorrem sozinhas à IVF) têm de tomar uma decisão difícil: abandonar alguns embriões depois de já terem conseguido um ou mais filhos. O cenário é este: devido à incerteza do processo, um casal para conseguir gerar dois filhos pode precisar do dobro dos embriões. No final, sim, pode ser necessário destruir os restantes e essa é uma decisão difícil e que acarreta um pouco de culpa, certamente. Nada é cem por cento limpo nestas questões. Mas, o certo é que sem este processo, não teríamos muitas crianças e muitas famílias. Ao declarar que os embriões são vida (um argumento legítimo, mas muito discutível), esta direita está na prática a proibir estas técnicas de reprodução artificial e, portanto, a impedir o nascimento de milhares de crianças (um facto). Em 2021, 86,146 crianças nasceram (2,3% de todos os nascimentos nos EUA) após concepção resultante de um tratamento de fertilidade. Estamos a falar de quase 90 mil bebés por ano só nos EUA. É muita vida. E claro que aqui se nota a diferença entre o norte azul e o sul vermelho. Os estados com mais índice de bebés via tratamentos médicos estão na Nova Inglaterra yankee (o mais alto: Massachussets, 4,5%); as taxas mais baixas estão no sul e no faroeste (o mais baixo: Novo México, 0,5%).
Se somos pró-vida como é que podemos ser contra as técnicas que ajudam casais inférteis ou mulheres sozinhas a ter filhos? Qual é a coerência? Podemos e devemos regular esta prática que não pode ficar apenas para a regulação comercial do mercado e do consumidor.Por exemplo, uma "barriga de aluguer" alugada por um casal de dois homens é altamente discutível, porque entramos num campo em que um ser humano é comprado como se fosse um bem transacionável. Já uma barriga de substituição feita apenas por amizade é de facto um hino ao amor (isto é, uma amiga aceita ser a mãe biológica de um filho de um dos membros do casal gay).
Como salienta Chris Cuomo,nunca o movimento pró-vida atacou a IVF, porque obviamente seria (e é) uma contradição. Porquê agora? É o contra ataque contra o casamento gay, é o desejo de proibir filhos naturais de pessoas homossexuais. Mas porquê? Uma vida é uma vida, seja qual for o seu enquadramento familiar. Há cerca de 1.1 milhão de famílias homossexuais só nos EUA; 700 mil estão casadas legalmente e cerca de 120 mil estão a criar filhos. Um casal homossexual de lésbicas podem recorrer facilmente à IVF. De resto, como escrevi há dias, ter duas mães parece ser um super-poder. Estes números espantosos das famílias homossexuais revelam que a vida - a real, não a teórica - tem muitos caminhos, tal como a família. Se o movimento dito pró-vida apoia o casamento, a família e a ideia de filhos, então porque é que se opõe às famílias homossexuais, sendo que 120 mil estão a criar filhos adoptados ou concebidos por IVF? Se as famílias homossexuais, como bem previu Andrew Sullivan logo em 1989, podem ser tão conservadoras (no sentido da família e do casamento) como as outras, porque é que este movimento continua com a sua pose homofóbica?
Continuemos na lista.
Em breve, os úteros artificiais serão uma realidadee provavelmente serão um auxiliar médico importante, pois há mulheres que correm sempre riscos na gravidez. O tema merece ser debatido, mas já se sabe qual é a posição dogmática do movimento pró-vida: são contra. Mas as atuais incubadoras que salvam os bebés precoces já são úteros artificiais. O movimento "pró vida" também vai proibir este método que salva milhares de bebés prematuros, só porque tem intervenção humana?
As contradições continuam. Do lado dos pró-vida de raiz evangélica costuma vir um apoio enorme à pena de morte e à ideia de que ter armas de assalto em casa é um direito. Como é que os defensores da vida têm evidente apego cultural à pena morte? Como é que um cristão do direito natural aceita que o leviatã, o moloch, assassine um ser humano através do direito positivo?Não, não se pode ser pró vida e pró pena de morte ao mesmo tempo. É como ser do BE e acreditar na especulação imobiliária. E como é que os alegados defensores da vida não relacionam a lei americana das armas com o facto da América ser um absurdo outlier no que diz respeito aos tiroteios e mass shootings? Ser pró vida e pró armas é uma evidente incoerência, sobretudo quando tantas crianças e jovens morrem em tiroteios potenciados pela facilidade com que se arranja uma arma de assalto nos EUA. Ou seja, ser pró vida devia significar a regulamentação de armas e não dos corpos das mulheres, o que nos leva ao tema seguinte.
A defesa da Vida e a lógica anti-aborto é, na verdade, um desejo de controlo puritano sobre as mulheres, sobre o corpo das mulheres e a consequente desresponsabilização do rapaz e do homem. Como diz Gabrielle Blair, todos os abortos começam num orgasmo masculino.Porque é que nunca se fala da regulamentação do corpo masculino? De resto, devemos salientar que o aborto é uma obsessão moderna – desde o século XIX. Isto é, desde o tempo que a medicina masculina passou a controlar aquilo que antes era só das mulheres: gravidez, parto. Ainda hoje é possível ver, por exemplo, na obsessão da medicina pelas cesarianas uma forma de transformar a mulher num mero recipiente biológico dos filhos, com o consequente desprezo pelas suas dores reais, que são sempre retratadas como mera histeria psicológica.
De Santo Agostinho até Hildegarda, figuras do cristianismo inicial não tinham uma posição dogmática sobre o aborto. A ideia de que a vida começa logo na conceção só foi consagrada na igreja em 1869. É por isso que as primeiras feministas e sufragistas eram medievalistas. Elas sabiam que a era moderna foi construída com base numa segregação de sexos e numa punição sexual contra as mulheres que não existiam na idade média, que era muito mais sensata e plural do que a sua lenda negra. Pessoas que são considerados “santos” fizeram abortos; o aborto era considerado um mal menor sem comparação com pecados como o sexo oral ou a mulher por cima no ato.
As contradições continuam naquela que é talvez a maior hipocrisia do movimento há décadas: por um lado, dizem que a vida é sagrada, mas depois diabolizam as mães solteiras; o papa Francisco ficou famoso por denunciar esta hipocrisia que transforma os sacramentos em armas de punição; por outro lado, dizem que a vida é sagrada, mas depois não defendem a construção de um estado social defensor da mãe, da criança, dafamília. Ou seja, é de novo uma inversão da lição bíblica. A questão moral central do Evangelho não é o puritanismo sexual (Jesus não perde uma sílaba com a cama das pessoas).
O que é ainda mais irónico é que esta agenda reacionária está a perder eleitoralmente. Após 50 anos de guerrilha cultural, esta direita reacionária conseguiu há dois anos reverter o Roe vs Wade (lei federal que garantia que o direito à privacidade da mulher tinha prevalência sobre a vida do embrião/feto). Mas, como escrevi logo na primeira Contrafactual, até o povo republicano dos estados mais vermelhos está contra essa reversão do Supremo ultra conservador e deseja o regresso do direito federal ao aborto. A questão é que as autoridades de 14 estados já proibiram por completo o aborto com medidas que até põem em causa a própria vida das mães. No Oklahoma, um senador quer tratar uma mulher que aborta como uma homicida e quer proibir a contracepção, isto é, a pílula.Quer no fundo rebobinar a fita dos últimos 60 anos de história. No Ohio, que também proibiu o aborto, raparigas que engravidam por causa das violações de que são vítimas têm de sair do estado para fazer este aborto óbvio.Repare-se: nem as exceções consagradas nas antigas leis do aborto (aborto em caso de ameaça à vida da mãe; aborto após a violação) são hoje defendidas pelo radicalismo dos pro-life. É por isso que Rita Matias, deputada do Chega, dá a entender que uma menina de dez anos que engravida durante a violação que sofreu não pode abortar. Respeito pelas mulheres? Zero. Respeito por uma criança violada aos dez? Zero. Nesta escala de valores, essa criança aos onze anos tem de dar à luz o filho do homem que a violou.
Na América vermelha, a começar no Texas, há uma confusão crescente entre "aborto" (abortion) e "aborto espontâneo" (miscarriage). Ou seja, um triste acaso biológico é tratado como um acto criminoso. É por isso que as mulheres a passar por um aborto espontâneo têm medo de não ser tratados num hospital, até porque os médicos têm medo de ser acusados de homicídio caso auxiliem medicamente quem está a passar por um aborto espontâneo. Não por acaso, a mortalidade das mulheres nestas condições está a aumentar.
Sabem quem é que punia a fragilidade biológica e genética como um defeito de carácter? O fascismo.
Por tudo isto, o público americano em geral está a reagir contra o movimento pró-vida. Porque a questão já não é, "Posso fazer um aborto?", mas sim "será que o médico vai cuidar de mim se tiver um aborto espontâneo?, será que me vão tirar o direito à pílula?, será que não posso recorrer à IVF caso seja infértil?, não posso fazer um aborto mesmo depois de ser violada?, não posso fazer um aborto se estiver em perigo de vida?". Neste momento, 85% dos americanos dizem que o aborto depende apenas da vontade da mulher após conversa com o médico e 75% diz que deve ser um direito federal. É uma das ironias da história: a vitória da direita da guerra cultural no Supremo (a revogação do Roe vs Wade) é agora um grave problema para a vitória eleitoral de Trump ou de qualquer candidato do GOP em qualquer eleição.
II. CONTADO NÃO SE ACREDITA
Porque é que precisam de uma metralhadora em casa?
Há dias, ficou ainda mais fácil para os americanos terem em casa armas que são na prática metralhadoras de guerra, pois o inevitável Supremo acabou com a proibição da venda de "bump stock". O que é um "bump stock"? É uma peça extra que transforma uma arma normal numa metralhadora e pode ser comprada como se fosse um eletrodoméstico. Isto parece sempre mentira: os americanos compram armas como nós compramos um micro-ondas. Mas porquê? Que argumentação válida pode ser dada em tribunal para permitir que uma pessoa transforme uma arma (cuja existência já é discutível) numa metralhadora? O exército do México vai invadir os EUA?
Falando sério, este é mais um passo na direção de uma guerra civil. Se Trump perder em Novembro, as milícias trumpistas vão mesmo pegar em armas e "resistir".
III. A LENTE DA ARTE
A distopia reacionária
O desejo de voltar atrás no tempo - a utopia reacionária que está no centro da Contrafactual desta semana - está bem ilustrado na série “The Man in the High Castle” (Amazon Prime), que adapta um romance de Philip Dick. É tão ou mais assustador e distópico do que o "1984" de Orwell ou o "Nós" de Zamiatine.
"Prematuros" é um livro autobiográfico de João Pedro George sobre o milagre do amor que são as unidades pediátricas que usam úteros artificiais (incubadoras) para salvar a vida dos bebés prematuros.