Bom dia!
Uma boa parte do clima apocalíptico em que estamos mergulhados tem origem infelizmente em muitas instituições da ONU, que se comportam como ONGs tremendistas e sequiosas de atenção e de fundos e que, por isso, carregam nas cores negras. Vimos isso durante a covid, e vemos isso todos os dias com o ambiente e as alterações climáticas – da ONU não nos chega um discurso marcado pela sensatez, mas pela urgência apocalíptica que (1) despreza factos e (2) cria uma narrativa ortodoxa que não admite contraditório. Assistimos à mesma coisa no campo das melhorias económicas, educacionais e de saúde nos países mais pobres – que desaparecem do discurso da ONU.
Por exemplo, nesta semana, recebemos um comunicado de imprensa da organização para os refugiados da ONU, ACNUR, que diz que África nunca viveu uma situação tão alarmante, que “África vive uma crise humanitária sem precedentes”. Isto está incorreto; é brutalmente falso. É um spin feito por uma organização que devia ser imune ao spin. Quer ao nível da violência política, quer ao nível das melhorias nas condições de vida, África em 2024 está muito melhor do que alguma vez teve nos últimos dois séculos. Continua a ser o continente mais pobre? Sim. Mas, como dizia o grande Hans Rosling, há uma diferença entre a pobreza abjeta de 1960 e a pobreza gerível de hoje em dia.
I FACTO DO CONTRA
África melhorou em todos os indicadores
O tal comunicado do ACNUR revela a má consciência histórica dos europeus e americanos, que nunca aceitaram enquanto facto o sucesso económico e social que foi a globalização, que cortou a pobreza mundial em metade; aliás, não foi apenas a globalização pós-1989 que reduziu imenso a pobreza extrema; a história do capitalismo moderno desde 1820 é uma história de sistemática redução da pobreza extrema. Nem a extrema esquerda nem agora a extrema direita conseguem encaixar este facto, mas o facto existe. Aliás, a pobreza em Portugal começou a baixar quando nos anos 60 o país se integrou no mercado europeu, EFTA.
Ora, nos anos 90 e início deste século, antes da hegemonia da narrativa ambiental, a grande narrativa do espaço mediático e intelectual era este enorme erro: a "globalização predatória", dizia-se, é uma forma do ocidente enriquecer através do empobrecimento do resto. A verdade é o exato contrário. Mas ainda hoje a maioria do público não acerta neste ponto.
Imaginemos que se faz esta pergunta a um público europeu: “neste momento o nível da mortalidade infantil em África é igual ao nível da mortalidade infantil da Europa de 1850, 1900 ou 1950?”. A maioria dos ocidentais responde de forma errada, pois não sabe que a mortalidade infantil na África de hoje está ao nível da Europa de 1950. A realidade é mais positiva do que as narrativas da moda. Hoje em dia, 7% das crianças africanas morre antes de chegar aos 5 anos, o que é parecido com a Europa de 1950. Mas dois terços dos europeus respondem de forma negativa, apocalíptica e errada, preferindo 1850 e 1900. É espantoso que seja assim porque nunca foi tão fácil obter informação.
Esta melhoria na mortalidade infantil está relacionada com o sucesso espantoso das campanhas de vacinação, como aquelas que são patrocinadas pela Fundação Gates, uma instituição que, ao contrário da ONU, não pinta a realidade com fantasmas e nuvens. É um dos factos mais grandiosos das últimas décadas: a erradicação de muitas doenças em África e na Índia. Alguns países, como o Togo, conseguiram erradicar quatro das NTD(neglected tropical diseases). Quatro, e não apenas uma.
A outro nível, a varíola foi erradicada em África nos anos 70. O último caso de peste bovina é de 2003 (Mauritânia). O único país africano que continua a ser afectado a sério pela pólio é Moçambique. Os números da malária baixaram de mais de 800 mil em 2000 para a casa dos 500 mil. A epidemia de HIV-Sida também está a baixar: o pico de mortes foi em 2004 (1 milhão e 800 mil à escala global; a maioria infelizmente ocorre em África). Agora estamos nos 860 mil.
Entre 1940 e 1950, a esperança média de vida de um africano estava nos 35 anos. Hoje está acima dos 70 anos. As "crises sem precedentes" estão lá atrás, no passado.
O PIB per capita subiu sempre. O Botswana hoje tem um pib na casa dos 15 mil dólares. Em 1950 nem mil tinha. A Nigéria tem um pib per capita de 5 mil. Em 1950, tinha 1800.Só para dar dois exemplos.
Ao nível da educação, nem precisamos de sites e estudos sofisticados. O Google diz-nos logo que o ensino primário completo em África passou de 52% para 69% entre 2000 e 2022. Nos primeiros anos de liceu, passou de 35% para 50% e o liceu completo passou de 23% para 33%. E podemos olhar para a variável educação de outra forma. Em 1950, só 18% dos africanos tinham alguma espécie de educação formal. Em 1900 eram 3%. Agora está na casa dos 78%. A percentagem de mulheres africanas sem educação escolar era de 87% em 1950; agora é de 26%. E, como bem sabe Melinda Gates, dar poder e educação às mulheres é a forma mais rápida de melhorar as condições de vida das famílias e países. Dar dinheiro aos homens significa que esse dinheiro vai ser gasto em tabaco ou bebida. Se for dado às mulheres, esse dinheiro vai ser gasto em comida, roupa e educação para as crianças.
Portanto, dizer que África vive uma crise sem precedentes é falso.
II. CONTADO NÃO SE ACREDITA
O Juiz e a bandeira
Eis a medida do clima de pré guerra civil dos EUA ou do golpe de estado em câmara lenta que é o trumpismo: ficámos a saber esta semana que um dos juízes do Supremo, Samuel Alito, pendurou a bandeira ao contrário (sinal de rebelião) quando Biden foi confirmado Presidente. Quando foi apanhado na curva, Alito culpou a... mulher. E, para continuarmos na categoria “mulheres de juízes do supremo”, sabe-se há muito que a mulher de Clarence Thomas recebe milhares de dólares de lóbis que depois exigem certas decisões do marido, o juiz Clarence Thomas. Também se sabe que a Mrs Thomas participou na campanha conspirativa que recusou ou recusa reconhecer Biden como Presidente. Não estamos na taberna, estamos a falar do Supremo, outrora a grande instituição americana.
III FACTO ESCONDIDO
Na edição da semana passada do Expresso, destaco esta peça de Miguel Cadete sobre a forma como a politização da música, seja qual for o sentido dessa politização, só pode dar mau resultado. Quando não se respeita esta sacralidade apolítica da arte, algo bonito, quimérico e até ingénuo como o Festival da Canção fica em causa.
IV A ARTE COMO LENTE
O último livro de Agualusa, “Vidas e Mortes de Abel Chivukuvuku”, mostra precisamente como as coisas estão mais luminosas em África, neste caso em Angola. A vida por lá está longe de estar perfeita, mas está melhor do que estava e, se não aceitamos os progressos reais, ficamos indefesos perante os profetas da desgraça. Há que ter esperança, até porque África pode ser o futuro da humanidade. Já na segunda metade deste século, "juventude" será sinónimo quase imediato de "África". Todos os outros continentes envelhecerão e perderão população, exceto África. Já em 2050, 35% dos jovens do mundo inteiro serão africanos, e a tendência é para um posterior crescimento desta tendência.
Serão os africanos capazes de gerir esta juventude? Isso é outra pergunta.
Até para a semana