Olá, bom dia,
Há certas narrativas que muito simplesmente não têm validação factual. E depois há factos que, apesar de serem gigantescos, não são percepcionados pelo público, porque não encaixam nas narrativas da moda. É como se não existissem; as lentes do público não os captam e por isso não são debatidos. E repito: podem ser factos gigantescos na sua dimensão objetiva e empírica. Corrigir esta cegueira epistemológica é um dos trabalhos fundamentais do escritor, seja ele jornalista, cronista, ensaísta, poeta ou romancista.
I. FACTO DO CONTRA
Biden deportou mais crianças do que Trump
Esta semana vou falar de dois factos que não existem na realidade mediática, porque não encaixam na dicotomia Biden vs. Trump. O primeiro está relacionado com a imigração, e o segundo com petróleo.
A narrativa, partilhada pelos dois lados do espectro político, é a seguinte: Trump é muito mais anti imigração e portanto expulsou mais gente. Só a verdade dos factos conta outra história: seja qual for a medida ou fonte, Biden deportou mais pessoas do que Trump. Não estou a dizer que essas deportações fazem ou não sentido do ponto de vista moral e político. Estou a dizer que Biben expulsou mais gente do que Trump e que isso não é reportado ou debatido na devida importância, porque nem republicanos nem democratas estão confortáveis com este facto. Para o povo republicano, Biden é um fraco incapaz de controlar a fronteira e dizem que só estarão seguros com Trump, logo não querem assimilar o facto. Para os democratas, sobretudo para a esquerda da esquerda, a mera ideia de deportação de ilegais é vista como racismo, logo não querem abordar o tema. Mas a verdade é esta:
Um determinado tipo de deportação subiu para 143 mil em 2023, o dobro do ano anterior; 18 mil destas deportações atingiram crianças. Em 2020, Trump deportou 14 mil dessas crianças e famílias.
Na fronteira, entre 2019 e 2020 (Trump), as autoridades tiveram 1.365.559 encontros com imigrantes ilegais e expulsaram 647.437; entre 2021 e 2023 (Biden), os encontros ou reencontros passaram para 5.022.027 e as deportações subiram para 2.557.603.
Se olharmos só para pessoas do México, a subida das expulsões é explosiva: 157 mil em 2020, 582 mil em 2021 e 692 mil em 2022 (p. 33).
A explicação para a diferença não está na agenda ou na agência de cada um dos presidentes, mas sim na realidade objectiva exterior à vontade de Trump ou Biden: é que o fluxo migratório aumentou bastante, logo as apreensões e deportações também tinham de subir.
Agora olhemos para outra questão: petróleo. Uma das narrativas, seguida pela esquerda dogmática e pela esquerda igualmente dogmática, associa a exploração de petróleo a Trump e as energias verdes à esquerda. Aliás, um dos slogans de campanha de Trump em 2016 e 2020 foi “drill, baby, drill” e hoje Trump diz que uma das maneiras de acabar com a "inflação do Biden" é “drill, baby, drill”, dando a entender que a economia americana deixou de extrair petróleo do seu próprio território. Sucede que isso não é verdade. Precisamente para combater a inflação (nos EUA e no resto do mundo, sobretudo nos seus aliados) e como forma de flanquear o poder russo neste campo, os EUA com Biden esticaram a sua produção de petróleo para o seu máximo histórico, aliás, é o máximo histórico de qualquer país em qualquer altura; nunca ninguém produziu tanto petróleo como os americanos neste momento. Ou seja, com Biden, os americanos também estão a drill, baby, drill. E há aqui uma continuidade histórica que une Trump e Biden: os EUA têm sido os maiores produtores de petróleo desde 2018, superando a Rússia e a Arábia. Politicamente, como tem defendido Fareed Zakaria, isto faz sentido na gestão energética do ocidente (não podemos pensar que as energias verdes vão de repente substituir tudo), e até porque a nossa transição energética não pode ser feita na dependência de duas enormes ditaduras. Seja como for, os dois lados da barricada política não conseguem pensar este facto, porque é um facto que aparece na contramão.
II. CONTADO NÃO SE ACREDITA
A Palestina não é assim tão importante... para os jovens
Quando olhamos para a representação mediática da realidade, sobretudo para as tvs, parece que a Palestina é a grande preocupação dos jovens universitários. Mas não é. Os assuntos mais importantes são as políticas de saúde (40%), acesso à educação(38%), igualdade económica (37%), civil rights (36%). O conflito do Médio Oriente está em último só com 13%. Também sabemos que a resposta mais comum à pergunta “quem é responsável pelo que se está a passar em Gaza?” é esta: Hamas (34%). Então, porque é que os mass media estão a criar a ideia de que aqueles radicais são representativos de uma geração? Mais: porque é que não se fala mais da presença óbvia de agitadores profissionais no meio dos estudantes?Um exemplo: entre as pessoas detidas pela polícia, cerca de metade não faz parte do corpo de alunos da faculdade em questão. Na faculdade de Austin, 45 dos 79 detidos não são alunos; e na tal faculdade de Columbia em Nova Iorque, o epicentro, 134 dos 282 detidos não são alunos da instituição. Portanto, há aqui um lado da história que não está a ser contado e que nos leva a outra questão: quem está a financiar esta “revolução”? Aliás, desde estes protestos pró Hamas e pró Hezbollah até ao Black Lives Matter, há muito por explicar nestes alegados movimentos orgânicos da esquerda radical americana.
III. FACTO ESCONDIDO
Proibir telemóveis nas escolas
No Expresso da semana passada, a minha peça de eleição é esta de Isabel Leiria: mais escolas estão a proibir telemóveis. Todos os dados vão nesse sentido, como tem dito e redito Jonathan Haidt no livro do momento nos EUA: A Geração Ansiosa.
IV. A ARTE COMO LENTE
Antissemitismo
“A Conspiração Contra a América” é, para mim, o melhor romance de Philip Roth por várias razões. Uma delas é a forma como documenta a força orgânica, silenciosa e quase omnipresente do antissemitismo na sociedade americana dos anos 30 e 40. Quando Trump subiu ao poder, dando asas à extrema direita anti-semita, falei deste livro. Lembram-se de Charlottesville em 2017? Não por acaso, numa óbvia resposta ao trumpismo, a HBO adaptou o romance. Tal como a adaptação de "Handmaid's Tale" pela Hulu/Amazon Prime, esta "Conspiração Contra a América" da HBO foi uma resposta da cultura americana ao trumpismo. Mas agora é preciso recordar que o ódio antisemita é muito democrático e está obviamente espalhado como uma doença na esquerda académica; uma esquerda muito amnésica.
Em primeiro lugar, está a cometer todos os erros do velho fascismo/supremacismo branco na forma como aceita o horror lançado sobre judeus; a porta-voz do protesto de Columbia partilhou propaganda da Al Jazeera no sentido de recusar a veracidade do horror do 7 de Outubro. Em segundo lugar, está aqui em jogo um esquecimento imperdoável no contexto americano: os judeus foram fundamentais no apoio a Martin Luther King, algo que a cultura woke de hoje quer apagar. O filme “Selma”, por exemplo, apaga da história os aliados judeus de MLK.
Sem a mesma qualidade, parece-me, o policial “Millennium” de Stieg Larsoon também aborda a força do antissemitismo enquanto elemento cool ou respeitável da sociedade. E, para os radicais de esquerda de hoje, ser abertamente antissemita é cool, tal como como era para os fascistas dos anos 20 do século passado. 90% dos estudantes acham inaceitável que se bloqueie estudantes pró-Israel. O que é espantoso é que 10%considera legítimo que se expulse judeus dos campus. São os 10% de radicais que têm demasiado tempo de antena nas nossas tvs.