Caro leitor,
André Ventura foi genial a montar a candidatura presidencial a contragosto, só não adivinhou que o Qarabağ lhe ia ofuscar os holofotes com a crise que abriu no Benfica, mas as notícias da morte do sistema que dão como certo que o último combate será entre o líder do Chega e o almirante que enxota os partidos parecem-me manifestamente exageradas.
Vale a pena ouvir as primeiras reações de Isaltino Morais, apoiante de primeira linha de Gouveia e Melo, que correu para a CNN a deixar este mimo - “O Dr Ventura pode vir a ser preso se as instituições judiciais cumprirem o seu dever” - para percebermos quem enfiou a carapuça de primeira vítima. Um recente estudo do ICS (Instituto de Ciências Sociais) ajuda a explicar porquê: 14% dos que dizem votar no almirante são eleitores do Chega, e esta é, aliás, a fatia mais fiel dos que querem Gouveia e Melo.
É simples. Com Ventura em jogo, o jogo mudou. Todos têm que refazer contas, o que ía à frente fica mais vulnerável e é muito cedo para agendar o funeral do sistema.
Primeira certeza: com tanto candidato, vamos ter uma segunda volta. Gouveia e Melo já não limpa isto à primeira (lembra-se? Foi assim que tudo começou) e ninguém sabe quem passa à segunda. Passou a haver dois tempos nesta corrida presidencial, o tempo antes de Ventura (a.V) e o tempo depois de Ventura (d.V) e a vantagem do almirante em todas as sondagens a.V fica à espera para ver como mexe o pêndulo d.V.
O pedido de desculpas que o líder do Chega apresentou ao país por ter acreditado que Gouveia e Melo era o homem certo é uma chicotada psicológica no eleitorado que está farto disto tudo. Afinal, o almirante "levou o pior para dentro do sistema", tem lá o Isaltino e o Rui Rio, e Ventura quer o almirante na segunda volta mas quer crescer à custa dele. Fazer bingo seria Gouveia e Melo ganhar sem lhe comprometer um segundo lugar vistoso e o almoço que Mário Ferreira, patrão da TVI/CNN, promoveu em agosto entre o líder do Chega e o almirante, não é alheio a isto tudo. Há uma cumplicidade latente entre estes dois homens.
Segunda certeza: Ventura vai fazer tudo para fragilizar o candidato do PSD, que colocará à frente de António José Seguro na lista das suas vítimas de eleição. O que o move é chegar a primeiro-ministro, é em nome desse objetivo que vai fazer o frete e correr o risco de se candidatar a Chefe de Estado, o seu verdadeiro adversário chama-se Luis Montenegro e o primeiro alvo a abater nas presidenciais será o candidato de Montenegro.
Maldade máxima: Ventura apresentou-se a citar Sá Carneiro e a invocar Passos Coelho, porque sabe que há uma direita (e um PSD) que queria Passos ou Portas e que resiste a Marques Mendes. Passos não apoiará ninguém e a sua ambiguidade não ajudará Mendes. Francisco Pinto Balsemão já veio pedir ao partido que fundou que tenha juízo, e se o PSD puxar pelo voto útil no seu candidato, Gouveia e Melo pode perder parte da base de direita que hoje o sustenta, com Ventura e Cotrim (outro complicómetro nas contas à direita) a também levarem por tabela.
Terceira certeza: o maior obstáculo de Marques Mendes não é Ventura. O candidato do PSD tem palmilhado o país com o lastro da popularidade ganha em anos de comentário na TV, teve a sorte de ouvir Rui Rio associar publicamente o seu apoio a Gouveia e Melo ao facto de Mendes/comentador o criticar muito quando ele liderou o PSD (Marques Mendes agradece-lhe o diploma de independência), e tem conseguido resistir olimpicamente a descer ao ringue para onde Ventura o quer puxar.
Não passar cartão ao líder do Chega e ao seu programa curto e grosso - ser contra ciganos, imigrantes e subsidiodependentes é muito poucochinho para chegar a primeira figura do Estado - talvez ajude a menorizar o trouble maker quando está em causa eleger um Presidente da República. Mas pior para Marques Mendes pode ser libertar-se do cordão umbilical que o liga ao Governo.
Se o Governo chegar a janeiro em alta e ligar o turbo, isso pode beneficiá-lo. Se a Saúde rebentar pelas costuras (Marcelo já está a impôr prazos a Ana Paula Martins), não dá jeito. E se o procurador Geral da República, por hipótese, se lembrar de passar da investigação preventiva à Spinumviva para a abertura de um inquérito à empresa do primeiro-ministro (parece improvável neste contexto, mas sabe-se lá!), Ventura atearia fogo à árvore. O maior obstáculo para Marques Mendes não é Ventura, mas pode ser o Governo.
Quarta certeza: António José Seguro é um dos que tem mais margem para crescer. Para isso, precisa de mobilizar indecisos do PS e do centro esquerda e de consolidar o esforço que tem vindo a fazer discretamente de aproximação a alguma direita orfã, que não esquece como ele ajudou a salvar a austeridade de Passos Coelho, o que lhe valeu a cabeça no PS. Quando José Luis Carneiro lhe manifestar o apoio do partido após as autárquicas (José Luis não esconde que está mortinho), talvez Seguro tenha o sangue frio de dizer um simples "Obrigado", sem se deixar misturar em excesso com o bandeiral socialista. Poderia ser ele o 'fora do sistema' confiável. Se não tivesse a seu desfavor uma pesadíssima falta de notoriedade e uma quase impossibilidade de conquistar a esquerda à esquerda do PS, sendo um grande teste ver se ainda consegue evitar que Rui Tavares avance.
Quinta certeza: a disputa pela segunda volta pode virar-se contra o almirante. Depois das autárquicas, quando as máquinas partidárias entrarem em cena (estão obsoletas e quem faz política à antiga não está a ver o filme, mas ainda contam muito), se os apelos ao voto útil desviarem o foco mediático para a disputa Ventura, Mendes, Seguro, a candidatura de Henrique Gouveia e Melo, que até aqui liderou, pode perder centralidade.
O almirante pesca em todas as águas. Mas nem sempre o que vem à rede é peixe.
Até para a semana