A vida é vil

A hora da verdade de Carlos Moedas

Carlos Moedas fala à comunicação social no dia do acidente, que provocou 16 mortos
MIGUEL A. LOPES

Caro leitor,

É cedo para sabermos que retrato vão os lisboetas tirar a Carlos Moedas até às autárquicas de 12 de outubro, mas a tragédia da Calçada da Glória não dá espaço a equívocos. As tragédias são assim mesmo, sofridas mas clarificadoras, e vamos finalmente ficar a saber de que fibra é feito o político que em 2011 Passos Coelho escolheu para acompanhar o escrupuloso cumprimento do memorando da troika, que em 2014 deu um salto gigante para comissário europeu em Bruxelas, que na volta, já “agarrado” à política, sonhou ser líder do PSD e primeiro-ministro, e que, quando há quatro anos ganhou Lisboa a Medina, não disfarçou um certo ar de fadado para dois passos atrás à espera do salto em frente. Governar Lisboa não era a sua maior paixão. É público que sonhou com o lugar de Montenegro. Quando o Luis cair, o seu nome estará na lista dos candidatos à sucessão. E as ambições futuras de Moedas não são alheias à forma como nos últimos quatro anos governou a cidade, obsessivamente focado num trabalho exaustivo, cuidado e profissional da sua própria imagem. A tragédia do elevador da Glória foi um trambolho também nesta caminhada. O susto e o desnorte deram nas vistas e as autárquicas da reeleição que já parecia anunciada vão, afinal, decidir o seu futuro: superar-se ou morrer.

As tragédias revelam os grandes líderes e Moedas não foi um gestor de crises à altura do aluno de 95% que há 40 anos deixou marca no secundário em Beja, que brilhou num MBA em Harvard, que aprendeu com o mundo que avistou do Goldman Sachs e que conseguiu surpreender na política à portuguesa. A um mês de ir a votos contra uma adversária que achou fácil arrumar com o rótulo de “radical” de esquerda, Carlos Moedas surgiu muito frágil na rua que chorava os mortos, a fugir do executivo camarário que lidera e da oposição que é suposto enfrentar, deixou que Montenegro o chamasse para a sua guarda e que Marcelo o sujeitasse a um duche escocês, e em vez de garantir com força aos lisboetas que nada ficará na mesma, correu para a televisão a insultar socialistas.

É cedo para sabermos onde e quando começou a negligência na manutenção dos elevadores, vamos ver quem em cada momento fez o quê e até onde vão os estilhaços desta história, mas foi um erro Moedas deixar-se arrastar para a lama da campanha eleitoral numa tragédia destas. A vantagem de ser o líder em situações de crise é poder correr noutra pista, jogar noutro patamar e poder marcar a diferença por, supostamente, ser quem está no leme. Se se confirmar que não há uma segunda oportunidade para causar uma primeira boa impressão, o presidente da câmara de Lisboa fraquejou no primeiro round. Sobra-lhe um mês para dominar o tapete.

Depois de deixar que Alexandra Leitão lhe desse uma lição de moderação e dignidade política e de ter conseguido, com o recurso estúpido à memória de Jorge Coelho, unir os socialistas – que, fiéis à tradição, já tinham desatado aos tiros, Carlos Moedas precisa de rapidamente infletir a marcha, deixar a roupa suja às oposições e elevar a conversa com Lisboa para soluções e compromissos. Não lhe pedem outra coisa.

Quem cá está sente a cidade no limite, o estaleiro não ata nem desata, os atrasos no Metro são um escândalo ambiental e financeiro, o turismo barato é uma praga, há lixeiras a céu aberto em espaços verdes, as carrinhas da Higiene Urbana saem do armário porque há eleições, o urbanismo congelou, os lisboetas são empurrados para fora da cidade, os nómadas digitais queixam-de de desintegração, o trânsito vomita Bolts e tuk-tuks, a via pública tem zonas doentes, a EMEL é pornográfica a sacar, a vida cultural não inova, a visão cosmopolita do presidente que adora tecnologia, unicórnios e WebSummits não paga qualidade de vida, falta algo novo, um marco, um símbolo, uma esperança, e Moedas disfarça, mas concorda.

Quando deita fora a equipa, dispensa vereadores um por um e vai à procura de sangue novo (até pediu ajuda a Isaltino), é porque reconhece que algo falhou. "Em equipa que ganha não se mexe" escrevia por estes dias Alexandra Leitão, com o dedo a calcar as feridas de uma cidade que tem tido propaganda a mais, cuidado a menos e um presidente excessivamente preocupado em dizer mal dos adversários. Agosto despediu-se com um subliminar descontentamento entre muitos dos que votaram Moedas em 2021, e a suposta “radical” da esquerda passou a ser vista como um seguro de vida para um presidente que, mesmo à direita, já se temia ser 'batível' caso o PS tivesse escolhido um candidato politicamente mais forte. Mas isto era antes da tragédia e a 3 de setembro o mundo mudou. A campanha eleitoral também.

A radical do PS foi a moderada de serviço. O presidente, que era suposto liderar a gestão de crise, geriu a logística nos bastidores mas fraquejou na montra. E o Chega, que se prepara para abocanhar poder local de norte a sul mas que em Lisboa não tem contado, cheirou a chance e Ventura já entrou em ação. Se foi com Medina presidente que a Carris contratou a empresa responsável pela manutenção dos elevadores e que parece ter nascido a tratar de piscinas, se um acidente em 2018 ficou por explicar, se Moedas chegou em 2021, nada questionou e agora acontece o que aconteceu, André Ventura não vai largar o ponteiro no dia 12.

Carlos Moedas sabe explorar a compaixão e começou por aí, pode conseguir mobilizar a direita, mesmo a mais frustrada com os seus quatro anos, perante o risco de o pacote Leitão/BE/Livre ganhar a câmara, e se conseguir tocar a rebate tem tempo de recuperar a vantagem inerente ao incumbente. Vai depender de si próprio. Não pode cometer mais erros, tem que se deixar de queixumes e arriscar a coragem de mostrar que é ele o primeiro lisboeta insatisfeito, a precisar, a pedir e a exigir mais e melhor.

Não é fácil, mas é simples.

Em equipa que falha, mexe-se.

Até para a semana.

A vida é vil