A vida é vil

As autárquicas e a normalização do Chega

Ventura enxameou o país com cartazes dele próprio, apostado em jogar tudo numas autárquicas em que não é candidato. O Chega vai disputar todos os municípios do país, está forte em câmaras fortes como Sintra e projeta alastrar a mancha de vereadores por todo o país. O PSD já enterrou as linhas vermelhas. PS e CDU vão ter quer escolher: bloqueiam vereadores do Chega e arriscam paralisar câmaras ou sentam-se à mesa com eles? A normalização do venturismo sobe um degrau a 12 de outubro
Ana Baiao

Caro leitor,

Vivi uma férias abusivamente longas cercada por cartazes de André Ventura. Dispenso sair da toca no querido mês de agosto, vivi Castro Marim e Moledo, Carrapateira e Sintra, Odeceixe e Aveiro (luxos à mão num país pequeno) e Ventura perseguiu-me. Ele tinha avisado – o Chega vai ter candidatos às autárquicas de 12 de outubro em todos os municípios do país – e como a matéria prima, pobre e escassa a nível nacional, é ainda mais pobre e escassa a nível local, Ventura tirou o coelho da cartola, clonou-se a si próprio, criou a ilusão de que o candidato às 308 câmaras é ele, e basta ir para fora cá dentro para ter uma experiência alucinante. O André está em todo o lado. Vai limpar isto tudo. E supera-se na arte de enganar o pagode.

Há nisto uma fragilidade que o político de que se fala não esconde. No seu predileto registo de vítima, tenta disfarçar a penúria de quadros, diz que “é difícil em muitas zonas do país”, porque “muitos candidatos [do partido] são atacados, ameaçados, condicionados” e “muito boa gente, infelizmente, não quer ou não sente condições de poder dar a cara" (Tadinhos!). Mas também há nisto (e há sobretudo) uma turbina que vai mudar, agora sim, os alicerces do mapa político. Começou nas legislativas, quando o Chega venceu em 60 concelhos. Mas o grande salto na implementação nacional do partido está projetado para outubro e confrontará o sistema com a morte das linhas vermelhas. Pedro Duarte, o ex-ministro que trocou o Governo pela candidatura da AD ao Porto, já perdeu os complexos - “Linhas vermelhas não fazem sentido nas autarquias”. E não tarda até que muita boa gente, da AD, do PS, e até do PCP, esteja em condições de subscrever um abaixo-assinado com esse título.

Imagine uma câmara da margem sul do Tejo ganha pelo PS ou pelo PCP, mas onde os cartazes de Ventura conseguem disputar poder e eleger vereadores. O que faz a esquerda? Diz que não fala com aqueles senhores porque não são gente decente nem confiável e arrisca deixar a autarquia bloqueada? Ou percebe que a paralisia lhe pode ser politicamente fatal e senta-se à mesa com os indecentes? No fundo, o que Montenegro está a viver a nível nacional para grande escândalo de alguma esquerda que ainda não percebeu o que aí está (claro que o segundo maior partido a nível nacional deve poder eleger juízes para o Tribunal Constitucional), é exatamente o que AD, PS e PCP vão ser desafiados a viver a nível local.

"Governar Sintra com o Chega? Não ponho limites, não tenho linhas vermelhas. Escolherei os competentes”, dizia por estes dias o candidato da AD a Sintra. Marco Almeida faz nos arredores de Lisboa o que Pedro Duarte faz no Porto e isto chama-se ceder à realidade. Em Sintra, o segundo município mais populoso do país, a vox populi não acha impossível Rita Matias ganhar. Nas freguesias da costa vicentina pejadas de imigrantes, a conversa de Ventura é manteiga no pão. No Algarve, no Alentejo e na Península de Setúbal estamos conversados, o mapa passou a azul nas legislativas e isso não se reproduz tal qual mas não desaparece em autárquicas. E no Norte, onde a direita conservadora tratou melhor de si, o combate da nova direita vai mais atrasado, mas Pedro Duarte lá saberá porque é que assinou o funeral das linhas vermelhas. O Chega, às costas de Ventura, vai ganhar câmaras mas vai, sobretudo, alargar a malha de norte a sul e o mercado a disputar é imenso. Estão em jogo 308 executivos camarários, mais de 3 mil freguesias, outras tantas assembleias municipais, num puzzle gigantesco a que concorrem milhares de cidadãos e é certinho que, mesmo com o risco de haver larápios na rede, o polvo do Chega vai crescer.

Há autarcas socialistas que viram o filme há muito tempo, quando recusaram deixar a Ventura o monopólio de temas que sabem tocar a vida das pessoas, seja o impacto social de uma imigração mal controlada, sejam os limites do Estado social. E o líder do Chega, mal ganhou as eleições nacionais com a ascensão a segundo maior partido, focou-se no combate que sabe ser decisivo: "Vamos ter bons autarcas para resolver os vossos problemas, de violência, de insegurança, de imigração e de mama do Estado, ao pé das vossas casas". Bons autarcas, nem pagamos para ver. O pessoal político de um partido não se compra no supermercado e há quatro anos foi o que se viu – o Chega elegeu 19 vereadores, que foram caindo como tordos com acusações de falta de democraticidade interna, e o partido falhou a implementação local. Mas isso foi há quatro anos, quando a maratona de Ventura ainda não tinha ultrapassado o PS no ranking nacional. Agora, já sentado à mesa dos grandes, o partido ganha poder de atração, ainda tem que recorrer sobretudo a deputados para se candidatar às eleições locais mas vai descobrindo novos artistas convidados e joga forte com a certeza de que é no poder local que as raízes se consolidam. O político nacional aparece na TV a sair de carros pretos, o político local está próximo, cruza-se na rua e no café, pára para ouvir queixas e passa a mexer cordelinhos, a gerir dinheiros, a mover influências, a ter verdadeiro poder.

Ventura chamou a este combate “o último degrau” e traduziu para quem não tenha percebido: “Antes de conseguirmos mudar este país como tanto queremos a nível nacional, nós temos de o conseguir governar a nível local”. Um partido unipessoal é uma doença ainda sem cura anunciada, não será desta que o Chega conseguirá ultrapassar a poderosa dupla que tem governado a Associação Nacional de Municípios, mas quando não se acha impossível Rita Matias morder os calcanhares à vitória em Sintra, não vale a pena ter ilusões.

PS e PCP ainda disfarçam de papo cheio, mas já não se livram do pão que o Diabo amassou. Há um processo de normalização em curso do venturismo. Seja bem-vindo ao Outono quente.


Até para a semana.

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