A vida é vil

AD e Chega: alguém explique a Montenegro o que é uma relação tóxica

Ventura fez-se convidado em S. Bento e saiu a apregoar um "princípio de entendimento" sobre imigração e nacionalidade. A seguir, dinamitou a decência do debate e deixou a AD calada. O Chega o que quer é somar vitórias e continuar a entalar Montenegro
Nuno Fox

Caro leitor,

Uma definição de bolso de relações tóxicas fala-nos de comportamentos negativos que prejudicam uma ou ambas as partes, afetando a autoestima e a saúde mental, e convém alguém abordar o tema com Luís Montenegro. Isto veio-me à cabeça depois da sessão parlamentar em que André Ventura leu uma lista de nomes de crianças inscritas numa escola pública com o único objetivo de fomentar o ódio aos imigrantes e denunciar uma alegada "mudança cultural e civilizacional" em Portugal, sem que da parte da AD tenhamos registado um pio.

O gesto do líder do Chega é tão ignóbil que não permite meios termos: os ignóbeis aplaudem e os decentes vomitam. Mas há sempre o silêncio dos comprometidos e a AD assobiou para o ar por estar comprometida. Ventura tinha acabado de sair de uma reunião com Montenegro em São Bento a apregoar "um princípio de entendimento" sobre imigração e nacionalidade. O Governo está na bizarra situação de precisar do Chega para avançar com as bandeiras que lhe quer roubar. E nem Hugo Soares nem Luís Montenegro estiveram para se meter em trabalhos. Deixaram ao social-democrata Aguiar Branco, que deve conversar regularmente com o primeiro-ministro, a tarefa de resumir a cena a uma pacífica manifestação de “liberdade de expressão”. Eu também já vivi num prédio onde uns jovens selvagens pichavam as escadas a invocar liberdade de expressão e confesso que esperava mais da segunda figura do Estado. A Montenegro desejamos boa sorte e cuidadinho.

Os sinais deixados pelo debate sobre imigração são importantes. André Ventura está disponível para acordos de cavalheiros e até sabe cultivar pose de estadista. Mas volta compulsiva e rapidamente à guerrilha que é, no fundo, a terra que o viu nascer. Assim, os que acreditaram que após ter fechado negócio com o Governo o líder do Chega entraria civilizado no debate sobre imigração, enganaram-se. A lista de filhos de imigrantes que exibiu como símbolo de um roubo às crianças portuguesas foi usada para escavar ódio e Ventura não vai parar de o fazer. Ele sabe que as listas de espera para creches gratuitas, as promessas eleitorais incumpridas, o aperto de quem não chega aos infantários privados e o cansaço de quem gere salários medíocres somam um pasto fértil e imperdível. E não vai largá-lo.

A lei de André Ventura é muito simples: se lhe roubam uma bandeira, ele saliva, sobe a parada e saca outra mais radical. Se a AD lhe tirou a imigração controlada e se até o PS percebeu que há matéria – citando José Luís Carneiro, "o Partido Socialista defende migrações controladas e em segurança" –, o Chega não se contenta em ter sido pioneiro nem fica a gozar os louros, escava um novo nicho, coitados dos bébés portugueses que estão a perder lugares nas creches, é esta a nova guerra em marcha e ninguém se admire que tenha pernas para andar.

O Estado Social tem limites e está pelas costuras? Tem e está. O maior fluxo migratório de que temos memória nas últimas décadas foi descontrolado e complicou? Foi e complicou. Mas os que cá estão legalmente não são empecilho, são parte, e é abjeto usar nomes de crianças para enxovalhar comunidades de imigrantes. Isto já não tem nada a ver com a necessidade de regular os excessos de imigração alimentados pelos governos de António Costa, porque quem cá está por direito deve ter os filhos nas escolas e porque é nas escolas que a integração melhor se faz. O silêncio da AD perante as alarvidades do Chega a que Francisco Mendes da Silva, insuspeito de ser um perigoso esquerdista, chamou esgoto e céu aberto (o ministro da Educação limpou a face do Governo mas a posteriori) é mau pelo que é e pelo que sinaliza: como nas relações tóxicas, uma das partes manipula a outra.

Luís Montenegro não é de se deixar levar, comprometeu-se e tem sido firme a não fazer acordos de legislatura com “partidos xenófobos”, mas o mais difícil, já se percebeu, começa agora. O Governo quer retirar a Ventura causas que lhe permitiram crescer eleitoralmente e que colam com expectativas das populações, mas se com isso o primeiro-ministro contava comprar o Chega é bom que tire o cavalo da chuva. A meta de Montenegro é continuar a crescer à custa de um esvaziamento dos partidos à sua direita, mas a meta de Ventura é chegar a primeiro-ministro e para isso vai jogar nos dois tabuleiros. À segunda, quarta e sexta pode ir a São Bento fechar entendimentos que lhe permitam cantar vitória; mas à terça e quinta vai continuar a correr por fora, a abrir frentes de rutura e a portar-se mal.

Ventura nunca será para Montenegro um parceiro fiável e nunca será para a direita que continua órfã de mais direita o líder conservador que há anos procura e não encontra. Os que esperavam ver o Chega normalizar-se após ter ultrapassado o PS na cadeia alimentar e acreditavam que se assumiria finalmente como uma direita serena e conservadora, disposta a somar estabilidade com a direita moderada, é melhor continuarem a sonhar com Pedro Passos Coelho, que está fora de jogo mas sempre é mais real.

Ventura até parece disposto a dançar o tango. Mas a única coisa que verdadeiramente espera da relação com o primeiro-ministro é continuar a manipulá-lo. Há relações assim, em que o parceiro tóxico até pode incentivar o isolamento da outra pessoa, e Manuel Monteiro, ex-líder do CDS e um dos conservadores que não tem ilusões, já avisou que a AD se está a deixar levar.

Sem maioria e com o mercado eleitoral a saque, Luís Montenegro precisa de saber lidar o Chega sem arriscar perdas de identidade. Faz-lhe bem ouvir ministros como Fernando Alexandre (única voz a “lamentar” a cena das crianças) ou Maria Lúcia Amaral, a ex-Provedora de Justiça, hoje na Administração Interna, que lavrou um relatório muito crítico da cena policial no Benformoso. E faz-lhe mal escolher Ventura para parceiro exclusivo em temas que mexem com respeito pelas pessoas.

Talvez esteja na altura de Montenegro olhar para o lado e começar a falar com José Luís Carneiro. Antes que seja tarde.

Até para a semana.

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