A vida é vil

Saúde? Na Educação, eles nem sabiam que não sabiam

Fernando Alexandre chegou, pagou aos professores, foi discreto no que começou a mexer e reinou a paz. Apanhado nos meandros de um Ministério que tem vida própria, o ministro da Educação assume desconhecer a realidade das escolas - "não sabia que não sabíamos, mas vamos passar a saber". Não tem outro remédio
RODRIGO ANTUNES

Caro leitor,
Nos governos como na vida a sorte conta e o ministro da Educação tem tido sorte. Fernando Alexandre chegou com luz verde das Finanças para acalmar os professores, safou-se de ser perseguido por sindicalistas a espumar de raiva com cartazes assassinos, provavelmente nem sabe quem é André Pestana, o incendiário líder do STOP que desapareceu em combate, e também deve ter uma memória distante de Mário Nogueira, o sindicalista da Fenprof que passou décadas a queimar ministros mas que finalmente se reformou. Sem Pestana, sem Nogueira, sem greves, e com dinheiro para acalmar uma corporação historicamente mais fácil do que a da Saúde, a fórmula parecia encontrada e a imagem competente e discreta do ministro faria o resto.

O pior é que os que avisam que habita um monstro no Ministério da Educação sabem do que falam e chegou a vez de Fernando Alexandre ser tocado. Quando o país ouve um ministro dizer que o Governo “não sabia que não sabia” o número de alunos que fecharam o ano letivo sem aulas pelo menos a uma disciplina, isto bateu no fundo. Vendo bem, se o argumento de Montenegro para fazer da lei da nacionalidade a primeira ‘paixão’ foi tratar-se de um tema pendente, não lhe ficava mal também ter levado a Educação ao primeiro Conselho de Ministros.

A história roça o burlesco e começou em novembro, na primeira vida desta AD, numa manchete do Expresso: o número de alunos sem aulas a pelo menos uma disciplina tinha caído 90%. A fonte eram números oficiais do Ministério da Educação e o ministro confirmou (o Governo quando chegou encontrara 324 mil alunos com falta de professores). Mas os números oficiais foram rapidamente desmentidos pela Fenprof, ainda na fase Mário Nogueira, e pelo Partido Socialista, ainda com a memória fresca dos oito anos em que mandara nisto (afinal, só tinham deixado 72 mil alunos em carência letiva). Com o chão a fugir debaixo dos pés e com a certeza de que um Ministério que falseia dados oficiais tem uma vida própria assustadora, o ministro pediu uma auditoria externa. Resultado: oito meses depois e com um custo para o erário público de 52.750 euros, ficamos a saber que há "lacunas e insuficiências que põem em causa a solidez dos dados reportados pela Direcção-Geral dos Estabelecimentos Escolares", e não é possível verificar os "números relativos aos anos de 2023/24 e 2024/25". O que se passou é um mistério.

Fernando Alexandre teve coragem para assumir a impotência - "Não sabia que não sabia" - e agarrou-se às sugestões da consultora, abrindo-se a um sistema que recolha informações diretamente das escolas através, por exemplo, "da recolha e compilação dos sumários das aulas". O processo não será um mar de facilidades mas também não é seguramente um problema digno de um Kasparov. Todos sabemos de alunos que terminaram o ano letivo sem aulas a pelo menos uma disciplina, cada escola saberá de si e é absolutamente incompreensível que o Ministério da Educação não consiga saber de todos, sobretudo quando estamos a falar de um Ministério que resiste à autonomia das escolas e que insiste em ser o epicentro centralizador de uma máquina gigantesca e disforme. Cereja hilariante no topo do bolo: a Fenprof não larga o megafone, continua a debitar números que diz fiáveis e contabiliza 1,4 milhões de ocorrências de alunos sem aulas. O ministro só não é o último a saber porque resolveu assumir que está às escuras.

"Agora sabemos que não sabíamos, mas vamos passar a saber". Fernando Alexandre propõe criar um sistema de informação que permita medir com rigor o impacto do problema da falta de professores e, depois do flop dos 90%, está obrigado a conseguir. Mas o que esta história nos conta é que há responsáveis, nos governos, nas oposições e nos sindicatos, que andam a enganar-nos com dados que sabem não ser sérios, que usam quando lhes dá jeito para fazer política, que desmentem quando querem torpedear adversários e que revelam um profundo desprezo por professores, pais e alunos.

O ministro da Educação escorregou na casca de banana mas fez bem em destapar a panela. Oxalá consiga. O Ministério da Saúde não é a única máquina trituradora e diabólica num Estado a pedir reforma, nem merece a exclusiva e obsessiva dedicação mediática do país. É incontornável que a saúde está primeiro, que Montenegro é responsável por ter entrado gabarola e está a pagar a fatura, que a ministra tende a atirar aos pés e que quando se souber tudo do caso INEM só por milagre poderá continuar a culpar funcionários pelas 11 mortes ocorridas durante a greve que o seu Ministério descurou, e até o Presidente Marcelo, cada dia mais fresco à medida que se aproxima da despedida, já veio alertar que os portugueses "podem perder um bocadinho a confiança nas estruturas de emergência" da Saúde. Mas duma coisa o Presidente pode estar certo: nas escolas a que se tenciona dedicar quando deixar Belém, vai encontrar muita vida para além da Saúde.

A popularidade de Fernando Alexandre conseguiu desviar a Educação do olho do furacão e, uma vez pagos os professores, reinou a paz. Mas é tão inconcebível não se conhecer a realidade das escolas portuguesas como não saber gerir uma greve no INEM. Com outro ministro, o "não sabia que não sabia" seria, aliás, imperdoável. A vantagem deste é que poupou créditos e expôs a atenuante de lhe ter calhado um Ministério que encaixa ao milímetro no puzzle do monstro que é o Estado.

A haver bala de prata deste Governo, ela passa, aliás, na Educação, na Saúde e no resto, por mexer no Estado. Lembram-se da antiga sede do Ministério da Educação na 5 de Outubro que António Costa anunciou em 2019 que passaria a residência universitária com 600 camas a preços acessíveis? Está devoluta há sete anos. Montenegro largou o projeto, alegou indicações da câmara, a câmara diz que deu luz verde, o monstro da 5 de outubro lá está, e se um dia destes soubermos que vai nascer por ali mais um condomínio de luxo, não se admirem.

Para começo de vida, Fernando Alexandre tem um desafio: resolver o enigma do diagnóstico oculto sobre o que verdadeiramente se passa nas escolas, sendo certo que sem diagnóstico irá falhar o tratamento. Aguardam-se notícias.

Até para a semana.

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