A vida é vil

“Eles não sabem a porra que estão a fazer”

Era suposto a Cimeira de Haia servir para fortalecer a Europa contra a imprevisibilidade de Donald Trump. O secretário-geral da NATO desviou-a para uma bajulação ao Presidente dos EUA, enquanto salvador do mundo. Vamos desviar milhões para a Defesa, ainda sem saber como e com que impacto no Estado Social. As direitas radicais salivam com o que está para vir
REMKO DE WAAL / POOL

Caro leitor,

Eu sei que não é muito católico extrapolar frases fora do contexto mas há uma frase de Donald Trump sobre o Médio Oriente que encaixa nos detalhes da cimeira histórica que hoje termina em Haia. "Eles não sabem a porra que estão a fazer", ouvimos da boca do Presidente dos Estados Unidos (um homem elegante…) sobre as violações do inesperado cessar fogo entre Israel e o Irão que o seu transtorno narcísico tratou de colar na lapela minutos antes de rumar à cimeira que quer pôr a Europa a pagar 5% do PIB para a NATO. Se nem o horripilante regime iraniano nem a insuportável extrema direita de Netanyahu se limpam das nódoas das vésperas e antevésperas, a verdade é que a mensagem de amor servil que Trump recebeu de Mark Rutte não é menos execrável.

"Não foi fácil, mas temo-los todos comprometidos! A Europa vai pagar à GRANDE (a caixa alta não é lapso), e será vitória tua", escreveu o secretário-geral da Aliança Atlântica em mensagem dirigida ao Presidente dos EUA. E Trump plantou-a de jacto, claro, na sua rede social. De vez em quando Vladimir Putin tem razão e quando o russo disse que, em breve, “todos ficarão do lado do mestre a abanar a cauda carinhosamente” mostrou conhecer os europeus. Mark Rutte escusava, apesar disso, de nos ter enxovalhado.

É vital que a Europa se emancipe na sua política de Defesa e que ganhe a autonomia estratégica que não tem, sobretudo quando se vê confrontada com um poder norte-americano que ameaça virar as costas ao velho aliado, mas a dignidade dos líderes que fundaram esta Europa não é compatível com a bajulação da mensagem de Rutte para Trump. A psicologia de porteira recomenda que assim seja com os narcisos que, afagados no ego, amansam e normalizam-se. Mas se a Cimeira de Haia foi pensada com o objetivo claro e a necessidade emergente de preparar a Europa e de lhe limitar danos decorrentes das novas ameaças e da imprevisibilidade do novo Presidente dos Estados Unidos, é incompreensível o tom do anfitrião da festa. Uma coisa são as profissões de fé na relação transatlântica de que continuamos a precisar como de pão para a boca, outra é permitir que a cimeira histórica descambe para entregas de troféus a um Donald Trump que deu um salto a Haia vestido de líder que resolve os grandes problemas do mundo mas que se está nas tintas para os europeus. Esperemos para ver o que dá o cessar fogo no barril de pólvora. O que dá Gaza. O que dá a Palestina. Onde está o urânio do Irão. E, já agora, o que dá a Ucrânia.

Luís Montenegro resistiu a levar uma camisola do Ronaldo para oferecer a Trump – deixou o número para António Costa – mas preparou-se no seu recente discurso de posse para um compromisso que escondeu na campanha eleitoral e que prevê alinhar com a meta de 2% do nosso PIB em Defesa já este ano. Paulo Rangel até já pronunciou ao lado de Rutte a sigla mágica que hoje será lavrada em ata no acordo de Haia – entre 3,5 e 5% – mas até lá não nos doa a cabeça. Os objetivos estabelecidos serão revistos em 2029, não sabemos se ainda haverá Trump, nem como estará a Europa. Mas sabemos que o impacto dos compromissos impostos pelos EUA, entusiasticamente assumidos pelo Senhor da NATO e aceites quase sem barulho pelos aliados, mudará as nossas vidas. “Os países têm de encontrar o dinheiro. Não é fácil”, reconheceu Rutte, “Claro que são decisões difíceis. Os políticos têm de fazer escolhas em situações de escassez.” Escassez é a palavra.

Para nós, Haia significa um acréscimo de despesa entre os 1300 e os 1500 milhões já este ano. E embora Montenegro diga que não irá colocar em causa nem o Estado Social nem as contas certas (a que Paulo Rangel, pelo sim, pelo não, passou a preferir chamar contas justas) e também diga que saberá “gerir de maneira a conciliar todos esses interesses”, é inevitável que tudo isto implique escolhas e o risco maior está diagnosticado. Com mais escassez, mais desigualdade e mais revolta, a direita radical continuará a crescer e a ameaçar tomar conta da Europa.

Andam todos aflitos e a grande discussão por cá é sobre quem imita quem. Montenegro é acusado de imitar Ventura para tentar roubar eleitores ao Chega e de alinhar com a má direita na prioridade que dá a temas como imigração, segurança ou nacionalidade. Mas o argumento não colhe. Basta ouvir a reação macia de Pedro Delgado Alves, atual líder parlamentar do PS, à primeira decisão do novo conselho de ministros da AD que restringe os direitos de nacionalidade a imigrantes e ameaça retirar-lhos em caso de condenação por crime grave (coisa altamente discutível). O que é que ouvimos à esquerda do PS? Que é “inconstitucional”. E o que diz Delgado Alves? Amacia o confronto, abre-se ao diálogo, sugere consensos e apenas é contra "embarcar em alterações súbitas". A razão é simples. A agenda não é do Chega, é de muito país que não vota Chega, e basta ouvir autarcas, a começar por socialistas, para perceber o que aconteceu. Ventura foi apenas o primeiro interlocutor disponível para ouvir e dar voz a desequilíbrios que governos socialistas deixaram alastrar e que hoje, libertos os fantasmas, já não são nem exclusivo de ninguém, nem meras perceções.

O que faz a diferença na abordagem de questões tão sensíveis como a gestão das ondas migratórias, a segurança, a criminalidade, as desigualdades e os limites do Estado Social é, na política como na vida, uma questão central chamada decência. Há respostas decentes e respostas indecentes. Retirar a nacionalidade a alguém que é julgado, condenado e que cumpre pena por crimes graves é indecente, a menos que estejamos a falar de máfias organizadas, e é politicamente muito "engenhocas" que a primeira decisão visível do novo Governo seja rever a lei da nacionalidade. Nem faltam verdadeiras prioridades nem havia necessidade. Mas é assim quando andam todos aflitos e o tom cordato do PS não é só por estar mirrado, é por perceber que o vento mudou, que as causas fraturantes da velha esquerda são secundaríssimas para a esmagadora maioria das pessoas, e que há causas da nova direita que falam, tu cá, tu lá, com problemas do dia a dia de muita gente.

Quanto à cimeira dos 5%, de duas uma: ou fica a meio caminho, amaciada pelas cartas de amor entre Rutte e Trump mas sobretudo pela realidade; ou avança cega por pressão dos EUA e acabará com o que resta das grandes conquistas do pós-guerra. Se o Estado Social e se a Europa como a conhecemos se despedirem, a direita indecente tomará conta da Europa e nos detalhes de Haia ficará para a História o Diabo.

O cúmulo seria acabarmos a citar Trump: "Eles não sabem a porra que estão a fazer".

Até para a semana.

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