A vida é vil

Montenegro ainda sonha com maiorias maiores

Montenegro II promete ambição, determinação e reformismo. Conta com Gonçalo Matias para abanar o Estado e arrisca uma agenda ambiciosa para melhorar o país e retirar ao Chega e à IL as razões que lhes permitiram crescer. Com o PS mirrado, o líder da AD não desistiu de continuar a crescer eleitoralmente. "Somos a aliança do meio" é o novo slogan
Nuno Fox

Caro leitor,

Finalmente um Governo com a ambição de dar a volta a isto. Já mal nos lembramos – Cavaco foi há décadas e Sócrates suicidou-se –, mas Luis Montenegro decidiu fazer da sua reencarnação como primeiro-ministro uma experiência memorável. Objetivo afirmado: transformar o país (coisa que a fraca energia de há um ano nunca lhe permitiria). Objetivo indisfarçável: retirar ao Chega as razões que lhe permitiram crescer (há temas bandeira no programa do Governo escolhidos a dedo). Objetivo secreto: não desistir de sonhar com uma maioria que se baste a si própria (se alguém disser que ele disse, ele nega. Mas há quem saiba que ele sabe que há quem saiba). E na verdade nada disto é novo.

Montenegro chegou ao poder com a cartilha de Cavaco, planeou desde o início saltar do Governo minoritário para um maioritário, falhou porque hoje há um fenómeno novo e incontrolável chamado Chega que mirra as contas à direita, mas o ADN da segunda vida desta AD não engana. O novo slogan lançado por Paulo Rangel no Parlamento – "Hoje, somos a aliança do meio, somos o partido do meio" – confirma as tendências expansionistas. Com um PS à míngua, a esquerda em agonia, a IL em crise e Ventura a ter que disputar bandeiras com o novo Governo, as metas do primeiro-ministro são duas: mudar o país e continuar a crescer.

Vamos ao que ele disse: “Este Governo está aqui para cumprir a legislatura de quatro anos", e "todos sabemos, e o povo também sabe, que a legislatura só não terá essa duração se os dois maiores partidos da oposição assumirem entre si uma coligação deliberada, ativa e cúmplice". Há nesta frase um cheirinho a "se quiserem voltar a provocar uma crise, não já, mas quando já tivermos resultados, estejam à vontade". É impensável que aconteça nos próximos dois anos, porque não interessa a ninguém e porque seria um delírio o PS repetir o erro de Pedro Nuno Santos e voltar a dar uma chance a Montenegro. Mas que o primeiro-ministro voltou disposto a esticar a corda é público e notório. Diz que vai "distribuir jogo", que quer "marcar golo" e que sabe "jogar de cabeça e com os dois pés". Se conseguir transformar em ação a ambição, determinação e vontade reformista que exibiu no Parlamento, o país ganha com isso.

Não vai ser fácil. Porquê? Porque o arranque da legislatura a que assistimos, mais cordato e macio, com o PS no estaleiro e Ventura ainda a habituar-se ao peso da nova responsabilidade, não é verdadeiro. Como resumia um ministro com humor, a oposição que conta mostrou-se assim: "Há um partido que está morto (o PS) e há outro que finge de morto (o Chega)". E o que finge de morto é uma caixa negra. André Ventura pareceu atordoado com o encosto que Montenegro lhe deu ao chamar à mesa do seu novo conselho de ministros temas como imigração, segurança, Estado social ou direitos laborais, mas o que é isso para quem está habituado a transformar espasmos esofágicos em votos?

O líder do Chega vai ter novos desafios – o seu eleitorado não perceberia que o partido chumbasse medidas deste Governo com as quais concorda e que foi pioneiro a defender, seja um mais apertado controlo da imigração, sejam mexidas na lei da greve –, mas uma das vantagens dos radicais e dos populistas é que por não terem limites são ágeis a encontrar saídas de emergência. Dizer que a 'panela' da AD e do PS está para ficar é a mais óbvia e Ventura já se agarrou a ela, embalado pela declaração de fidelidade de Luís Montenegro a José Luís Carneiro: “Nós não vamos nunca diminuir o Partido Socialista, nem deixar de fazer um diálogo franco, aberto, leal, genuíno, autêntico com o PS".

Vai ser assim, um Governo em negociação intermitente, ora com os socialistas, ora com o Chega, sem reconhecer 'um' líder da oposição, como confirma a decisão do primeiro-ministro de chamar os dois partidos à mesa para falar de Defesa. Com o PS, Montenegro sabe poder contar nas questões mais institucionais e de soberania, no tema salários, na Justiça e na Reforma do Estado (quem arrisca ficar de fora?), e mesmo na imigração ou segurança, que até Pedro Nuno Santos teve que retirar da gaveta dos tabus. A razão é simples: o facilitismo com que alguma esquerda insiste em considerar que imigração ou segurança são exclusivos da direita radical e que Montenegro os chama a si apenas para tentar esvaziar Ventura é não ver o óbvio. O aumento da insegurança, o crescimento caótico da imigração ou os limites do Estado Social já não são 'temas Chega'. Como perceberam autarcas de vários partidos, incluindo do PS, o que parecia secundário ganhou espaço, ainda que com populismo à mistura, na cabeça, na vida e nas escolhas das pessoas.

Nada disto garante vida fácil ao Governo - PS e Chega vão ter que mostrar que são oposição - e Montenegro corre riscos. O primeiro é perder tempo e ritmo à medida que o reformismo bater de frente com corporações e interesses instalados. O maior será ser apanhado pelo adverso contexto internacional e ver comprometidas as irritantemente otimistas previsões económicas de Joaquim Miranda Sarmento. Baixar impostos, subir salários e pensões, reformar o Estado, avançar no PRR, fazer investimento público, avançar na habitação … o bolo é sedutor, mas não resistirá a uma crise económica internacional. Depois há os riscos inerentes a uma tática política declaradamente bipolar. Negociar umas coisas com o PS e outras com o Chega e não fraquejar no ritmo (Marques Mendes, em campanha presidencial, já apontou os primeiros 100 dias como teste) é um enorme desafio para um governo que, embora reforçado, continua minoritário.

Montenegro vai ter que avançar rápido, antes que o Chega lhe mine o caminho, que a IL se recomponha da crise de liderança e que o Partido Socialista volte a engrossar a voz. O programa de Governo que o líder da AD soube adaptar às novas circunstâncias precisa de retirar a Ventura e aos liberais parte das razões que permitiram ao primeiro crescer e ao segundo instalar-se, mas sem espantar o eleitorado mais moderado e o próprio PS, com quem o primeiro-ministro – sem se bastar a si próprio e sem um Chega confiável – sabe ter que contar.

Com dois anos de vida garantidos pelos constrangimentos constitucionais inerentes às presidenciais de 2026, Montenegro tem que mostrar rapidamente que veio mesmo para reformar o país. Os socialistas, virados para dentro, dar-lhe-ão folga. Mas Ventura mantém como meta a cadeira do poder. Se algum percalço interromper a legislatura, ou a direita moderada falhou e o Chega volta a crescer; ou Montenegro revelou capacidade de ação, travou a direita radical e consegue, quem sabe, uma maioria maior.

Costa só o conseguiu à terceira (e já fora de prazo). Montenegro, se quer marcar golo, tem que fazer muito mais do que distribuir jogo.

Até para a semana.

A vida é vil