Caro leitor,
O rombo de domingo à noite levou-me a pensar em Rui Rio. Quando liderava o PSD, e não foi assim há tanto tempo, Rio foi literalmente massacrado pelos média por alegadamente se ter encontrado com o líder do Chega no seu gabinete no Parlamento. Se ainda hoje não sabemos como lidar com André Ventura, em 2020, para o efeito, era como viver no tempo em que os animais falavam. Rio não confirmou nem desmentiu o meeting com o eixo do mal, a comunicação social achou um escândalo poder ter acontecido, o PS aproveitou para croquetes, e António Costa – que nunca quis a mão do líder do PSD mais social-democrata dos tempos modernos (Rio sempre se disse "de centro-esquerda") –, aproveitou uma entrevista ao Expresso para cortar o mal pela raiz: "No dia em que a sua subsistência depender do PSD, este Governo acabou”.
A assombração da direita radical já pairava no país, na altura ainda em versão 'semente'. Mas o instinto de sobrevivência de Costa assobiou para o ar e tratou de si. Em vez de se preocupar com a ameaça de um partido alinhado com a vaga das direitas radicais europeias (que Marcelo sobejamente avisou estar à espreita e Costa respondeu-lhe ser pintura abstrata), cheirou a oportunidade e tratou da vida. Para o PS crescer era preciso tornar o PSD dispensável, empurrá-lo o mais possível para o Chega e colá-lo a alegados projetos comuns de ascensão da direita ao poder, e essa é a história da maioria absoluta socialista que devolveria Rio ao Porto e engordaria Ventura. O rombo do passado domingo é apenas o mais recente e dramático capítulo da mesma história.
"O principal problema do PS não é Pedro Nuno Santos". Pedro Adão e Silva, um insuspeito 'costista', reconhece num artigo justo no “Público” que o partido falhou, primeiro com António Costa e depois com 'Pedro zigue Nuno Santos zague', ao relativizar os riscos do Chega para toda a classe política e ao não ajudar a "libertar o PSD do Chega". Agora, como 'casa arrombada, trancas na porta', assistimos desde domingo a um cómico desfile de vozes que à esquerda reclamam a Luis Montenegro que escolha o Partido Socialista para parceiro preferencial. Alguns destes são os mesmos que sempre consideraram um erro fomentar entendimentos entre AD e PS, porque isso só alimentaria Ventura. Mas depois de Ventura ter chegado a segundo maior com o PS e o PSD ao estalo, já não há teorias que resistam e já ninguém sabe bem o que fazer à vida.
Sabemos uma coisa. Que PSD e CDS têm mais em comum com o Partido Socialista de sempre do que com o Chega da moda é uma ‘lapalissada’ histórica (Soares fez um Governo com o CDS e um Bloco Central com o PSD e não lhe caíram os parentes na lama). Mas se em 2020, após Costa se ter libertado da geringonça, ainda seria possível os dois maiores trabalharem para isolar o que já se percebia ser uma ameaça à higiene do regime, hoje é tarde demais. Com Ventura a liderar a oposição, Montenegro não está obrigado a sentá-lo à sua direita à mesa, mas já não o pode deixar fora da sala. E não faltará muito para que Hugo Soares telefone a Pedro Pinto para conversarem no seu gabinete na Assembleia da República. Desta vez não será às escondidas, apenas dirão que também telefonam ao PS, à IL, ao Livre, e a quem mais, para cumprir o "diálogo com todos, todos, todos" anunciado por Montenegro no domingo.
A esquerda acha mal, rejeita relações abertas e quer exclusividade. E Ventura não pedirá menos – nada de misturas, Montenegro ou escolhe o Chega ou escolhe o PS. Mas com um Chega maior que o PS, não há parceiros preferencias. Chegou a vez de ser Montenegro a assobiar para o ar e tentar aproveitar a disfuncionalidade emergente para continuar a crescer. Não será fácil mas não é impossível. O estado comatoso do Partido Socialista, impedido de voltar a votos nos tempos mais próximos por ter que se dedicar ao que António Vitorino fez o favor de chamar reconstrução do partido, garante que se o Chega falhar eles estarão lá. Rejeitarão a moção de rejeição dos comunistas ao Governo, viabilizarão o primeiro Orçamento de Estado, serão por um período previsivelmente longo um dique contra crises políticas e assim tentarão sobreviver à travessia do deserto.
Só que esta não é uma travessia como outras. Já vimos morrer os socialistas franceses, já vimos morrer os italianos, já vimos o seu espaço ser ocupado por outros e a tentação de Montenegro passará por aí, por esticar ao máximo a espargata com que já sinalizou querer gerir a nova e desafiante conjuntura. Ele sabe que a prova de sobrevivência não é só para o PS, os eleitores deram à AD a condição suficiente para trabalhar mais e melhor mas a sua vitória, sendo indiscutível, é mais frágil do que parece. A única garantia de ter mais margem de manobra parlamentar do que tinha é mesmo a agonia socialista e, com o cutelo do Chega à espreita, Luís Montenegro tudo fará para a aproveitar. Isso passa por colocar a AD num centro com tendências expansionistas, agora desguarnecido por um PS mirrado, sem desistir de falar à direita decente mas sem ilusões de conseguir esvaziar a vaga radical que chegou para ficar. Por quanto tempo, ninguém sabe.
O primeiro-ministro sabe três coisas. Que a Spinumviva pesou (a imagem da família abraçada num círculo cúmplice no palco da vitória falou-nos de um trauma); que a IL falhou; e que sem maioria absoluta o Governo vai andar sempre no fio da navalha. André Ventura não engana ninguém e o que disse à saída da audiência com Marcelo é uma espécie de guião para noites mal dormidas. O Chega será "um farol de estabilidade e de mudança", não garantirá estabilidade "a qualquer preço" e "não deixará que o país caia numa nova crise política" mas "terá um Governo pronto para governar a qualquer momento". A qualquer momento, ok?
Com vizinhos destes, Luis Montenegro não precisa de inimigos. No dia em que a sua subsistência depender do Chega, de duas, quatro: ou uma nova liderança no PS abriu espaço para o que fazem muitos dos nossos parceiros europeus – entendimentos ao centro contra a vaga extremista – e o PSD agarra a chance; ou a AD consegue crescer por entre os escombros do PS, afirma-se no ‘centrão’ e prepara-se para arriscar bingo; ou se verga a Ventura no cemitério do ‘não é não’; ou o Governo acabou.
Montenegro vai ser pressionado a trabalhar com o PS na primeira hipótese, mas o seu desejo é outro: passa por continuar a crescer como líder de um partido charneira. Ainda a tempo ou tarde demais, eis a questão.
Isto pode acabar mal.
Até para a semana.