Caro leitor,
Já percebemos que o que nos espera é a campanha eleitoral mais anormal das nossas vidas. Em 1991, quando fiz pela primeira vez a cobertura jornalística de uma campanha eleitoral, no caso a inesquecível caminhada de Cavaco Silva para a sua segunda e estrondosa maioria absoluta, lembro-me de achar bizarro que Cavaco repetisse todas as noites, quer o comício fosse em Lisboa, em Macedo de Cavaleiros ou em Freixo de Espada à Cinta, que era preciso estabilidade, muita estabilidade, porque tinhamos "a guerra aqui tão perto". Cavaco referia-se à Guerra do Golfo, um conflito militar entre o Iraque, que invadira o Koweit, e uma coligação internacional liderada pelos Estados Unidos e o povo que abarrotava os comícios estava-se nas tintas para a guerra que sabia longínqua.
Agitar o medo dá jeito aos políticos (Gouveia e Melo não quer fazer parte do clube, mas vai-lhe apanhando os tiques) e as campanhas das maiorias cavaquistas foram poderosos e raros manuais de mobilização e liderança, mas o que verdadeiramente lhe permitiu galgar os 50% em legislativas, mais do que o medo do que sabíamos estar longe, foi "o Portugal de sucesso". Trinta anos depois, agora sim, com a Europa já com a guerra dentro de casa e obrigada a preparar-se para mudar de vida, a dúvida é se para pior, se para muito pior, temos Bruxelas a propôr kits de emergência (água, comida, medicamentos, pilhas e baterias) para garantir 72 horas de sobrevivência sem ajuda externa e Portugal resolveu mandar-se de cabeça para uma crise política de desfecho incerto sobre desvios éticos do primeiro-ministro. Boa sorte!
"Não é nenhuma brincadeira, é uma questão séria". Pedro Nuno Santos escolheu escavar as dúvidas que pairam sobre a vida político/empresarial de Luís Montenegro e não faltam razões para investigar. A forma atabalhoada, em esforço, com dias de atraso e remoques à comunicação social como o primeiro-ministro tem gerido as respostas às perguntas em jogo não passa um bom sinal. Mas não é nada líquido que a Spinumviva e a Capítulo Universal (o batismo das empresas de Espinho tende a competir com o das tempestades), dois investimentos gémeos da dupla Montenegro/Hugo Soares, cheguem para que o medo de mais dia menos dia ver isto tudo desabar leve os eleitores a trocarem a AD pelo PS de Pedro Nuno.
Falta mês e meio, faltam debates, há investigações em curso, não é aconselhável pormos as mãos no fogo por ninguém, mas há uma história recente que pesa. Não estou a pensar na história de José Sócrates, que a Ana Sá Lopes tão bem recordou no Público ter sido escamoteada para lá de Bagdad, quando poucos quiseram ler os sinais. Mas estou a pensar na história de António Costa, que se demitiu de primeiro-ministro após saber que era alvo de um inquérito no Supremo Tribunal de Justiça, por o seu nome ser referido como tendo intervindo para "desbloquear" negócios sob investigação.
O impacto deste caso, com buscas em S. Bento e em vários ministérios e com a detenção de cinco pessoas, entre elas o chefe de gabinete do próprio primeiro-ministro, foi muito mais concreto e por isso mais devastador do que as dúvidas e suspeitas que rodeiam a empresa e o ex-escritório de advogados de Luis Montenegro. Mas após termos ficado a saber pelo Expresso que também há uma investigação em curso no DIAP do Porto sobre adjudicações em Espinho, em que o escritório do agora chefe do Governo consta dos denunciados no inquérito-crime por ter feito um parecer que Montenegro começou por dizer não existir mas que afinal existe, isto parece andar tudo ligado. Somando ao enredo a frase de Costa no dia em que se demitiu em S. Bento – "É meu entendimento que a dignidade das funções de primeiro-ministro não é compatível com qualquer suspeição sobre a sua integridade, boa conduta e menos ainda com suspeita de qualquer ato criminal, por isso, obviamente, apresentei a demissão" – até soa estranho que ainda ninguém tenha vindo reclamar a demissão de Montenegro. Mas os entendimentos sobre a ética na vida pública são como o amor, têm razões que a razão desconhece, e tudo é menos estranho do que parece.
Se António Costa se demitiu por causa do dinheiro vivo encontrado no gabinete ao lado do seu e do comunicado da PGR a confirmar estar o seu nome em inquérito no Supremo, e se apesar disso o mesmo António Costa que entendia não poder governar o país por estar sob suspeita é hoje Presidente do Conselho Europeu, para quê ter caído um Governo, ter havido uma crise política, e estarmos agora a caminho da segunda crise política, após ter caído um segundo Governo? Mas há mais. Já com Costa instalado em Bruxelas, sem nunca ter sido sequer constituído arguido e só tendo sido ouvido a seu pedido, o novo Procurador-Geral da República, Amadeu Guerra, disse em público que o ex-primeiro-ministro continua a ser analisado no âmbito da Operação Influencer, uma vez que o acervo documental ainda não foi “totalmente verificado”. Vale a pena ouvi-lo: “Se ainda não foi deduzida a acusação nem foi arquivado o processo, significa que o processo está pendente”. Sobre timings, Guerra não se compromete – “os processos esperam o tempo que for necessário”. Quem conseguir explicar qual é a moral desta história merece bingo.
Um primeiro-ministro demite-se por estar sob suspeita. Um Governo de maioria absoluta cai. Um Presidente da República convoca eleições. O primeiro-ministro demitido é eleito Presidente do Conselho Europeu. O novo primeiro-ministro fica sob suspeita, em versão mais difusa mas persistente. Não se demite, mas concorda com Costa que não é possível governar sob suspeição. O Presidente da República faz-lhe a vontade e convoca eleições. Para o português médio, que o que quer é melhores salários, menos impostos, mais casas, menos barracas, melhor saúde, mais segurança e menos chatices, nada disto faz sentido. Não sendo expectável que Montenegro, caindo, vá para um alto cargo na Europa, não é impossível que o percurso de Costa leve o cidadão comum a achar que chega de desperdícios. Se a Justiça anda há mais de dez anos às voltas com Sócrates, se não ata nem desata o parágrafo que tramou Costa, e se nem sequer ouviu Albuquerque, que após o raide da PJ soma e segue na Madeira, talvez seja precipitado achar que o "inquérito preventivo" anunciado por Amadeu Guerra à Spinumviva e a investigação ao caso do cimento da casa da família Montenegro (a do Norte, porque a de Lisboa, que juntou dois andares sem pré-aviso à câmara, já passou) possa vir a dar para grandes revoluções.
Se houver novidades de Espinho é uma coisa, se ficar por aqui será outra. Montenegro, se pudesse, antecipava as eleições já para amanhã. Não podendo, vai ser mês e meio a correr contra o tempo e a fazer figas para que o prato da balança com o ano de Governo AD pese mais do que o prato que sustenta as suspeições.
Já agora, se alguém conseguir aproveitar a campanha anormal para lembrar que vivemos numa Europa condenada a mudar de vida e obrigada a fazer escolhas a que não está habituada, dá jeito. Ganhe quem ganhar a 18 de maio, vai precisar de um kit de sobrevivência. Vendo bem, o único que se safou a tempo foi mesmo António Costa.
Até para a semana.