O aumento tem sido acentuado. Já há mais de 66 mil certificados de motoristas TVDE, de acordo com os últimos dados (datados de 3 de outubro) do Instituto da Mobilidade e dos Transportes, o IMT, sendo que no primeiro ano em que a lei esteve em vigor, em 2018, havia 18.265. Ou seja, cinco anos após a entrada em vigor da lei, o número de motoristas certificados pelas autoridades mais que triplicou.
Em contrapartida, apenas dois de um total de operadores de plataforma TVDE (transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados e a partir de uma plataforma eletrónica) licenciados para explorar esta atividade no país estão de facto a operar: a Uber, a pioneira em Portugal, onde está presente desde 2014, e a Bolt, que quando começou a atividade em 2018 chamava-se Taxify.
Há, depois, um total de 16.043 operadores de plataforma eletrónica (segundo dados de setembro do IMT), ou seja, os parceiros da Uber e da Bolt que têm empresas que dão trabalho aos motoristas.
A lei 45/2018, que regulamenta as plataformas eletrónicas de transporte em veículos descaracterizados, entrou em vigor a 1 de novembro de 2018, depois de meses de discussão no parlamento e de uma longa contestação do setor do táxi, com protestos em várias cidades do país.
O diploma permitiu, então, um período transitório de quatro meses de adaptação aos operadores de plataformas, estando quatro a operar na altura em Portugal -- Uber, Cabify, Bolt (anteriormente Taxify) e Kapten (anterior Chauffeur Privé).
Para ser parceiro e ter automóveis ao serviço das plataformas é obrigatório constituir uma empresa, já que a lei só permite a atividade a pessoas coletivas. Estas empresas estão sujeitas a uma licença do IMT, válida por 10 anos, para poder operar.
Os motoristas estão igualmente obrigados por lei a obter uma certificação do IMT, depois de receberem uma formação de 50 horas, com componentes prática e teórica, e precisam de ter um contrato escrito com um parceiro, que passa a ser a sua entidade empregadora.
Ao contrário dos taxistas, cujo regime jurídico foi revisto e entra hoje em vigor, os motoristas TVDE estão impedidos de recolher passageiros na rua sem serem requisitados através da plataforma electrónica e não podem circular em faixas 'bus', nem parar em praças de táxis. Estão igualmente proibidos de estar mais de 10 horas por dia ao volante, independentemente da aplicação para a qual trabalhem.
Depois da contestação dos taxistas contra a Uber e a Bolt, são agora os motoristas de TVDE e os parceiros das plataformas digitais que reivindicam melhores condições de trabalho, tendo realizado diversas manifestações em 2022 e já este ano.
O setor exige mais fiscalização, uma taxa fixa nos serviços e uma extensão do prazo das matrículas para 10 anos, entre outras reivindicações.
Por outro lado, a Federação de Sindicatos dos Transportes e das Comunicações (FECTRANS) tem defendido uma intervenção "mais intensiva" das entidades fiscalizadoras ao setor das plataformas eletrónicas de TVDE, lembrando que os motoristas estão atualmente desprotegidos, sem horários de trabalho, levando a que façam "muitas horas de serviço para ter um rendimento digno".
Também o Sindicato dos Trabalhadores de Transportes Rodoviários e Urbanos de Portugal (STRUP) admitiu avançar com uma queixa ao Provedor de Justiça Europeu caso o Governo português não reveja a lei e "acabe com os abusos" que se verificam na atividade.
"Este setor não pode continuar a trabalhar em 'dumping'. As contas já foram apresentadas ao Estado há cerca de dois anos e nada foi feito até agora. Basta nós irmos a um portal da queixa e percebe-se que as pessoas já não se sentem seguras de entrar num carro destes", apontou o sindicalista Isidro Miranda.
'Dumping' é uma prática comercial que consiste na negociação de produtos, mercadorias ou serviços por preços extraordinariamente abaixo do seu valor justo, muito frequentemente abaixo do custo.
Lei ainda por rever
Prevista para 2022, a revisão da lei que regula o TVDE ainda não avançou. Na lei 45/2018 estava prevista a avaliação do regime jurídico três anos após a entrada em vigor. A avaliação aconteceu, tendo o Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT) apresentado no relatório final propostas de ajustamento das regras em vigor. Contudo, o documento, datado de dezembro de 2021, apenas foi tornado público já no final de 2022.
Já este ano, o Governo voltou a adiar a revisão da lei que rege a atividade do setor TVDE, prevendo agora que esteja concluída em 2024.
Em fevereiro, na Assembleia da República, o ministro do Ambiente e da Ação Climática, Duarte Cordeiro, disse que o processo de revisão daquela que ficou conhecida como 'Lei Uber' será feito depois de terminadas as alterações à Agenda do Trabalho Digno e de conhecidas as medidas da União Europeia para o setor.
Portugal, que foi um dos pioneiros na elaboração de legislação para o setor do TVDE, está agora à espera da proposta de diretiva da União Europeia (atualmente em discussão), para fazer as alterações à lei.
A diretiva pretende introduzir uma presunção de ‘laboralidade’ na relação contratual existente entre a plataforma e o trabalhador, através da verificação de certos indícios, tendo em conta que atualmente não é explícito se os motoristas da plataforma digital são prestadores independentes ou trabalhadores subordinados.
Conforme explicou à Lusa Monique Arruda, investigadora no Centro de Estudos e Investigação em Direito da Universidade Católica Portuguesa, quando legislou sobre o assunto Portugal criou a figura de "uma quarta pessoa", além do operador de plataforma, cliente e prestador de serviço: o operador de TVDE.
"Para resolver o problema fiscal e os problemas existentes com o setor do táxi, a opção do legislador foi criar a figura do operador de TVDE para operar a Uber e a Bolt no transporte de passageiros, mas os motoristas não estão ligados ao operador de plataforma", explicou Monique Arruda.
Segundo a investigadora, tal facto "desonera a plataforma digital", já que "só o operador de TVDE pode ou não fazer contrato de trabalho com o motorista".
Portugal foi mais uma vez pioneiro, ainda segundo Monique Arruda, ao criar "a presunção de laboralidade do trabalho em plataformas digitais com o artigo 12.º-A do Código do Trabalho".
A investigadora lembrou também que, em outubro de 2022, Portugal assinou uma carta rejeitando a adoção de medidas que "apenas perpetuam o desequilíbrio existente" entre as plataformas digitais e os trabalhadores, defendendo que a transição verde e digital ocorra "de mãos dadas com os direitos dos trabalhadores".
Também a advogada-estagiária Carolina Rufino, cuja tese de mestrado na Faculdade de Direito da Universidade Católica teve como tema o "vínculo contratual de trabalhadores em plataformas digitais: o caso concreto dos motoristas TVDE", explicou ter chegado à conclusão, "após estudar várias questões", que os motoristas "são trabalhadores e não prestadores de serviços".
De acordo com Carolina Rufino, a questão jurídica estudada foi a classificação do vínculo jurídico dos motoristas TVDE, sendo que o problema se prende com a posição que a plataforma digital assume na relação com o motorista TVDE, na medida em que "esta não é, nem pretende ser considerada como entidade patronal, mas como mero serviço de intermediação de transportes".
"Foi muito vendida a ideia de que trabalhar com TVDE permitia que o motorista fosse o seu próprio patrão, mas na verdade quando analisados todos os fatores não é bem o que acontece, apesar de terem uma livre escolha de horários ou trabalhar as horas que quiserem", esclareceu.
Carolina Rufino sublinhou que apesar da escolha dos horários em que trabalham e das horas que fazem, isso tem "impacto na retribuição, que é precisamente variável tendo em conta o número de viagens realizadas" para atingir um determinado número que irá dar bónus ao motorista pelo operador da plataforma. "Parece que é o motorista quem controla o seu tempo, mas é a plataforma que exerce muito controlo sobre o trabalhador, uma vez que fixa a remuneração que este recebe por cada viagem, tem acesso constante à sua localização GPS, aplica sanções consoante a avaliação dos clientes, podendo até bani-los", tendo ainda em conta um algoritmo que nem o próprio operador de TVDE conhece, podendo este último fazer ou não um contrato de trabalho.