Guerra na Ucrânia

Não, Vladimir, os EUA não querem destruir a Rússia: uma análise ao discurso de Putin, uma fantasia patriótica no dia de Carnaval

Germano Almeida analisa o discurso “delirante” do Estado da Nação de Vladimir Putin sob três aspetos: inversão, apropriação e justificação. E deixa um aviso no final

Vladimir Putin
MAXIM SHIPENKOV

A exemplo do que acontece no terreno de batalha, Vladimir Putin tentou disfarçar com quantidade a falta de qualidade que tinha para apresentar no discurso desta terça-feira: foi uma intervenção de quase duas horas, autojustificativa, que quase nada revelou de novo. Uma fantasia patriótica em dia de carnaval.

Proponho classificar a intervenção do Presidente da Rússia em três aspetos: 1) inversão; 2) apropriação; 3) justificação.

Toda a argumentação inicial remete para a narrativa de inversão já usada quando da cerimónia de anexação de Donestsk, Luhansk, Zaporíjia e Kherson, em setembro passado.

Nessa primeira fase do discurso, Putin atirou para o Ocidente e para os EUA as responsabilidades, as ações e as culpas que a verdade objetiva e factual só pode atribuir à atual liderança russa. O líder russo teve o desplante de afirmar isto no seu monólogo delirante: “A culpa do conflito é toda dos líderes Ocidentais, foram eles que começaram a guerra e nós usamos a força para a travar”.

Inversão

Não, Vladimir: não foram os EUA que começaram a guerra na Ucrânia – foi mesmo a Rússia. Não, Vladimir: não foram os EUA que “mentiram descaradamente” sobre os motivos da invasão – foi mesmo a Rússia.

Não, Vladimir: não foram os EUA que empurraram a Ucrânia para a guerra para destruir a Rússia – foi mesmo a Rússia quem atirou a Ucrânia para uma invasão totalmente ilegal, imoral e indecente.

Não, Vladimir: não são os EUA que querem “uma derrota estratégica para destruir a Rússia” – é mesmo a Rússia que quer acabar com a identidade e soberania territorial da Ucrânia.

Não, Vladimir: a Rússia “não queria sinceramente a paz”, quando apresentou aos EUA e à NATO, em dezembro de 2021, pressupostos totalmente inaceitáveis (para memória futura: exigia que a Ucrânia não tivesse o direito de querer entrar na NATO, exigia a retirada das armas nucleares dos países do flanco NATO que entraram nos alargamentos dos finais dos anos 90 e primeira década do século XXI).

Apropriação

Chega então o ponto da apropriação. Putin referiu-se à Ucrânia como se fosse dele (“queriam separar a Ucrânia do nosso território”). Como se não fosse um país com fronteiras reconhecidas internacionalmente, independente e soberano desde o início dos anos 90. “Lançaram ataques sobre o Donbass”, acusou, indignado, o líder russo. Como se o Donbass fosse da Rússia.

Saudou as “quatro regiões”, referindo-se às anexações absolutamente ilegais de Donetsk, Luhansk, Zaporíjia e Kherson. Pediu às outras regiões russas que colaborem na “integração”.

Este foi, por isso, um discurso de dissimulação. Putin tentou projetar (para dentro da Rússia e para as capitais de aliados da Ucrânia, que transmitiam atentamente as suas palavras em direto) uma suposta noção de sucesso e triunfo que em nada confere numa breve monitorização do que se passa no terreno.

Quase um ano depois do início de uma guerra de agressão que imaginava vir a durar no máximo umas três semanas, Putin não tinha, sequer, uma grande conquista militar para apresentar. Esforçou-se por disfarçar, limitando objetivos, focando-se no Donbass e nas “regiões anexadas”.

Justificação

E, por fim, a justificação. Putin quer reformar as forças armadas russas e entende que chegou a hora de apoiar as famílias dos combatentes (criação de um Fundo Estatal de apoio) e gerir o cansaço e a moral das tropas no terreno (duas semanas de férias com bilhetes pagos para ir a casa) – tudo sinais de que considera que a guerra (termo que nunca usou) está para durar (e ele sem vitórias militares para anunciar nesta data emblemática).

No cúmulo da hipocrisia, mostrou-se preocupado com a emissão de gases poluentes – ele que provocou uma guerra que, ela própria, é fator de agravamento dessas emissões e pelo desvio de atenções que criou no que toca à frente da emergência climática.

Jurou que a Rússia não está isolada, perorou sobre “os custos para a Europa das sanções que eles próprios impuseram”, apontou “novos mercados emergentes” para onde o foco de Moscovo cada vez mais se virará.

O mais preocupante para o fim

Acusou o Ocidente de não querer a Paz – mas não disse que espécie de paz proporá, se não abdica da presença de quase meio milhão de soldados russos em território ucraniano.

Repetiu a tecla, um pouco bizarra, do discurso moral sobre “a catástrofe espiritual” dos “comportamentos devassos” do Ocidente – possivelmente para marcar pontos em sensibilidades ultraconservadoras e extremistas que vão brotando nos EUA e na Europa.

E guardou para o fim a novidade mais assustadora: suspende a Rússia das negociações da renovação do novo Tratado START, lançando, de novo e com receios alargados, o medo nuclear.

Mais do mesmo – mas em versão prolongada e com alguns pormenores que refinam uma perversa hipocrisia que o define como agressor.

Levou resposta certeira do Conselheiro de Segurança Nacional da Administração Biden, Jake Sullivan: “Ninguém está a atacar a Rússia. Há uma espécie de absurdo na ideia de Putin”.

E enquanto isso, Joe Biden -- um dia depois de ter reforçado alinhamento com Zelensky em Kiev, em visita corajosa e profundamente simbólica (primeira vez que um Presidente americano em funções visitou cidade a ser bombardeada e primeira vez que esteve em zona de uma guerra onde não há tropas norte-americanas) – somou na Polónia a construção de uma aliança alicerçada no flanco Leste da NATO.

Sem argumentos válidos para rebater, Putin vai insistindo na narrativa fantasiosa. Não se antevê que possa melhorar.