Guerra na Ucrânia

“Como se Portugal inteiro tivesse sido obrigado a fugir.” Zelensky levou Portugal à Ucrânia

Presidente ucraniano falou como se Portugal inteiro coubesse na Ucrânia e estivesse a ser destruído, incendiado e em fuga. Mas também lembrou 25 de Abril para apelar à reconquista da liberdade no seu país. Santos Silva deu-lhe apoio (quase) incondicional, Zelensky acabou ovacionado de pé por todos. Todos, menos os ausentes comunistas e os que o protocolo não permitia

A bancada do PCP ficou vazia na sessão solene
Tiago Miranda

“Mariupol é tão grande como Lisboa e não há uma habitação que não esteja destruída.” “Os russos já sequestraram mais de 500 mil pessoas, o que é duas vezes a população da cidade do Porto.” Milhões de pessoas tiveram de fugir da Ucrânia desde que começou a invasão russa, o que corresponde à imagem de um Portugal inteiro em fuga: “Como se Portugal inteiro tivesse sido obrigado a fugir.” Portugal é um “país médio” no contexto da União Europeia, e um “país pequeno” no contexto do mundo, mas no discurso que fez perante o Parlamento português esta quinta-feira à tarde, o Presidente da Ucrânia fez questão de mostrar a dimensão relativa das coisas: como se Portugal inteiro coubesse na Ucrânia e estivesse a ser destruído, incendiado e em fuga. Tudo para pedir ajuda: mais sanções à Rússia, mais armas e mais apoio à adesão à UE junto das organizações europeias.

As comparações continuaram ao longo dos 14 minutos de intervenção por videoconferência e com tradução simultânea. A proximidade com o aniversário da revolução do 25 de Abril foi usada por Volodymyr Zelensky, que lembrou o Parlamento que também Portugal “se libertou da ditadura”. “Vocês sabem perfeitamente o que outros povos sentem, especialmente na nossa região, onde antes havia liberdade”, disse, equiparando o regime de ditadura que Portugal viveu até 1974 com a falta de liberdade a que o povo ucraniano foi votado desde que as tropas russas entraram no país. “Um insulto”, apelidou Paula Santos, líder da bancada parlamentar do PCP, partido que esteve fora do hemiciclo para não se associar a Zelensky.

Indiferente a vozes dissonantes, Zelensky demorou-se em imagens mais explícitas da guerra no seu país: violações, corpos no meio das ruas, crematórios móveis, crianças inocentes atingidas e campos de concentração improvisados em “regiões remotas da Rússia” foram alguns exemplos que trouxe para o Parlamento português para deixar claro que “as fotografias não mostram tudo” e que o comportamento da Rússia é equiparável ao de outros regimes totalitários durante a II Guerra Mundial.

De camisa azul e gravata amarela (as cores da bandeira ucraniana), António Costa assistia na bancada do Governo, juntamente com a ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares, a ministra da Defesa, o ministro da Administração Interna e o secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, mas sem aplaudir — ao contrário de todo o hemiciclo, que se levantou para um aplauso sonoro quando o convidado terminou a intervenção. O gesto foi estranhado por muitos, e Helena Carreiras e José Luís Carneiro, estreantes nas funções governativas, ainda ensaiaram um aplauso, mas corrigiram a tempo. A explicação é a “prática parlamentar”, uma regra não escrita que indica que o Governo não se manifesta na Assembleia da República. Marcelo Rebelo de Sousa, no topo da Mesa da Assembleia, faria diferente e aplaudiria de pé numa sessão solene que mostrou um Parlamento quase todo unido (o PCP foi a exceção) no apoio à Ucrânia e na condenação da invasão russa.

E foi a esse Parlamento unido com seis cadeiras vazias que Zelensky fez pedidos claros e “simples”: armamento para desocupar as cidades da ocupação russa (“tanques e armamento pesado”), mais sanções à Rússia, pedindo inclusive a Portugal que se juntasse a outros países da União Europeia na defesa do bloqueio do sistema bancário russo, e mais diplomacia. “Por favor, apoiem-nos neste caminho da União Europeia”, disse, referindo-se ao pedido que está em curso de adesão da Ucrânia ao estatuto de país candidato à adesão à União Europeia. “Vocês estão na ponta mais a Oeste da Europa e nós na ponta mais a Leste, mas os valores e os direitos que devem existir na Europa são iguais de uma ponta à outra”, disse.

Ucrânia “conta com Portugal”

A resposta foi dada por Augusto Santos Silva, na qualidade de presidente da Assembleia da República. É ao Governo que cabe a definição da política externa, não à Assembleia da República, mas Augusto Santos Silva, que há uns meses era o rosto dessa mesma política externa, fez questão de chamar a atenção do Presidente ucraniano para o mais alto nível de representação do Executivo na sessão. Tudo para dizer que os seus apelos serão “bem examinados”.

Com Zelensky ainda ligado a Lisboa por videoconferência, Augusto Santos Silva garantiu-lhe que Portugal se bate sempre pela preservação da unidade na UE e na NATO e que “não obstaculiza, antes favorece, os processos de decisão em curso no sentido de apoiar cada vez mais” a Ucrânia. O presidente da Assembleia da República foi até um pouco mais longe ao sublinhar que Portugal defende um “exame pronto e atento” do pedido de candidatura à UE. “Prezamos as aspirações europeias da Ucrânia”, insistiu.

“Ao defender-se, a Ucrânia defende-nos a todos, a todos os que defendemos os valores da liberdade e da democracia”, disse Santos Silva, enunciando, de caminho, o que Portugal tem feito nesta matéria: apoiou “imediatamente a condenação expressa pelas Nações Unidas à agressão russa”, além de ter estado “no primeiro grupo de países a solicitar ao Tribunal Penal Internacional a investigação sobre os crimes de guerra”. A Ucrânia pode, por isso, contar com Portugal.

E falou ainda numa “vasta cadeia de solidariedade” que se estende à população portuguesa no acolhimento de refugiados ucranianos. “O tratamento que os portugueses dedicam aos ucranianos é característico da nossa maneira de ser”, descreveu, tratando-os “como iguais, irmãos da mesma humanidade”. Mas se a unidade nacio­nal foi destacada pela segunda figura na hierarquia do Estado, houve uma outra unidade bem patente: a unidade na condenação da ausência do PCP pelos restantes partidos. (A bancada parlamentar da Iniciativa Liberal faria até questão de abandonar o hemiciclo quando os comunistas usaram da palavra nos trabalhos que se seguiram na Assembleia da República.)

Santos Silva não se referiu diretamente ao PCP, mas deixou uma frase que se presta a leituras várias nas entrelinhas: “O agredido tem o direito de se defender e deve ser apoiado nessa legítima defesa.” E, lendo um discurso escrito, nem falhou uma ponte cultural com a Ucrânia, lembrando a Zelensky que Lisboa tem o busto do poeta Taras Shevchenko numa das suas praças.

Após as intervenções do Presidente da Ucrânia e do presidente da Assembleia da República, ouviram-se os hinos nacionais de ambos os países. A partir da capital ucraniana, Zelensky cantou de pé o hino do seu país, de braços caídos e punhos fechados. Em Lisboa, alguns ucranianos presentes nas galerias também entoaram o hino. Quando se ouviu “A Portuguesa”, Zelensky manteve-se de pé, de rosto fechado e com a mesma postura com que ouviu e entoou o seu hino.