“Conheço a loucura dos séculos, a loucura dos crimes e da lassidão, mas a loucura do bem existe, deve acontecer.” Mykhailo Orest, um poeta ucraniano do século XX, não se referia, nem poderia, à "loucura" dos vinte dias de guerra que deixaram na boca do seu povo o trago amargo de cem anos de solidão. Volodymyr Zelensky, um Presidente que ainda não vê o fim ao conflito, também aqui que se encontra: num ponto onde tem de mirar longe para ver-se alcançar a vitória possível. Mas já não fala sozinho, e as suas palavras são aplaudidas como as dos poetas.
Se na guerra não cabem epopeias, também é verdade que dela nascem discursos históricos, inflamados. Foi o que aconteceu quando, nesta terça-feira, o Presidente da Ucrânia se dirigiu ao Parlamento do Canadá, tentando colocar o Ocidente nos sapatos de quem sofre na pele as dores da invasão. "Imaginem que, às 4h00, cada um de vós começa a ouvir explosões de bombas, explosões severas... Conseguem imaginar-vos a ouvir, e os vossos filhos, a ouvirem explosões? Como é que consegue explicar aos seus filhos que um ataque em grande escala acabou de acontecer no seu país? Pode imaginar telefonar para [líderes de] outras nações amigas e pedir-lhes 'por favor, fechem o céu, fechem o espaço aéreo. Parem com os bombardeamentos'?"
No discurso de desafio, Zelensky foi ainda mais longe: "Imaginem o aeroporto de Otava bombardeado e Vancouver cercada." O líder ucraniano pediu aos deputados canadianos que imaginassem como reagiriam a uma invasão das próprias cidades. Dando o exemplo de Mariupol, o Presidente da Ucrânia questionou como seria se o Canadá tivesse uma cidade de tal modo sitiada. "Imaginem que alguém cerca Vancouver. Podem imaginar isso por um segundo? Essa é exatamente a situação que a cidade de Mariupol está a sofrer agora. E ficam sem aquecimento, ou água, ou sem meios de comunicação, quase sem comida..."
Não foi, claro, de Vancouver, nem de Otava. Foi de Mariupol que, nas últimas 24 horas, surgiram relatos de grandes perdas. Na cidade ucraniana agora sitiada, foram vistas casas em chamas após ataques em áreas residenciais. Em Mariupol já terão morrido mais de 2500 civis, estimam autoridades ucranianas. Além dos bombardeamentos constantes e da falta de condições para garantir a subsistência, nesta terça-feira, Pavlo Kyrylenko, líder ucraniano da região de Donetsk, confirmou também que os médicos e doentes estavam a ser retidos nas instalações do hospital número 2 da cidade.
Numa mensagem transmitida pelo Telegram, Kyrylenko disse que os trabalhadores conseguiram passar a seguinte informação: "É impossível sair do hospital. Eles disparam, estamos na cave. Os automóveis não conseguem entrar na zona do hospital há dois dias. Os edifícios ao lado estão a arder. Não conseguimos sair." Kyrylenko garante que o hospital está praticamente destruído há dias, mas que os médicos e doentes continuavam a ser tratados na cave do edifício.
É já um conjunto de motivos que leva Sergei Orlov, autarca de Mariupol, a considerar que as forças russas estão "a destruir" a cidade ucraniana e que os pacientes do hospital foram usados como prisioneiros. Uma situação que Sergei Orlov descreve como "terrível".
A vice-secretária de Estado dos EUA, Wendy Sherman, revelou, contudo, que começam a surgir histórias de carros que conseguem sair de Mariupol. Dois mil veículos conseguiram passar os limites da cidade.
Também nesta quarta-feira, bombardeamentos que atingiram edifícios em áreas residenciais de Kiev provocaram a morte de várias pessoas, de acordo com as autoridades ucranianas. Imagens de satélite agora reveladas expõem, aliás, a destruição generalizada em toda a Ucrânia, incluindo casas danificadas numa vila perto de Kiev. Na capital, foi imposto novamente, e por 35 horas, o recolher obrigatório.
O Ministério da Defesa russo alegou ter capturado toda a região de Kherson, depois de ter tomado a capital regional há duas semanas. Um alto oficial militar ucraniano confirmou que as forças russas estão agora no controlo de grande parte da região de Kherson. São avanços que os Estados Unidos da América têm considerado como "não apreciáveis", mas que levaram, uma vez mais, o Presidente ucraniano a pedir uma zona de exclusão aérea no país.
Subindo o tom das críticas, Volodymyr Zelensky atacou a eficácia do Artigo 5 da NATO, caracterizando-a como "fraca". Aliás, nunca a sua utilidade e aplicabilidade mostraram ser tão "fracas", declarou o chefe de Estado ucraniano.
Terminaram novamente sem acordo as negociações entre as comitivas russa e ucraniana. Os trabalhos serão retomados na quarta-feira, de acordo com o negociador ucraniano Mykhailo Podoliak. O processo de negociação tem sido "muito difícil e escorregadio", observou este alto responsável que representa o Executivo ucraniano. "Existem contradições fundamentais. Mas certamente há espaço para concessões."
Já com os líderes da Polónia, Eslovénia e Républica Checa, que chegaram nesta terça-feira à Ucrânia, as relações não poderiam ser mais amigáveis. “É aqui que a liberdade luta contra o mundo da tirania”, disseram os viajantes à chegada. Os primeiros-ministros dos três países convidados a entrar em solo ucraniano chegaram a Kiev de comboio, para se encontrarem com Zelensky e o primeiro-ministro ucraniano, Denys Shmyhal. A "coragem dos verdadeiros amigos" foi saudada por Shmyhal.
Biden também deverá viajar para a Europa na próxima semana, para participar numa reunião extraordinária da NATO e expressar o apoio dos EUA à Ucrânia, confirmou nesta quarta-feira a Casa Branca. Biden estará junto dos líderes mundiais da aliança do Atlântico Norte em Bruxelas, na próxima quinta-feira, 24 de março.
Uma jornalista da televisão estatal russa que na noite de segunda-feira ficou mundialmente conhecida por ter iniciado um protesto contra a guerra durante uma transmissão em direto no canal apareceu nesta terça-feira no tribunal de Moscovo e foi multada, mas pelo vídeo em que justificava a sua decisão, e não pelo ato reivindicativo.
A Rússia, atingida por sanções internacionais desde o início da invasão, respondeu na mesma moeda, avançando com punições contra 13 norte-americanos, incluindo o Presidente Biden, o secretário de Estado Antony J. Blinken e o secretário da Defesa, Lloyd J. Austin III, mas também o filho do chefe de Estado norte-americano e Hillary Clinton.
OUTROS NÚMEROS:
- Procuradores russos pedem 13 anos de prisão para Alexei Navalny (Fonte: BBC)
- Todos os dias 70 mil crianças da Ucrânia tornam-se refugiadas (Fonte: ONU)
- Mais de três milhões de pessoas já fugiram da Ucrânia (Fonte: ONU)
- Forças russas já lançaram mais de 950 mísseis desde o início da invasão da Ucrânia (Fonte: Defesa dos EUA)
- Retiradas 29 mil pessoas de cidades ucranianas esta terça-feira (Fonte: conselheiro presidencial ucraniano)
- Cerca de 10 mil pacientes transferidos para hospitais da UE (Fonte: Comissão Europeia)
- 97 crianças morreram desde a invasão russa (Fonte: Volodymyr Zelensky)
- Forças russas fazem 400 reféns num hospital de Mariupol (Fonte: um autarca de Mariupol)
OUTRAS HISTÓRIAS DESTA TERÇA-FEIRA:
- Ucrânia: OSCE vai averiguar existência de crimes de guerra e contra a humanidade
- Turismo com mais de 10 mil ofertas de emprego na BTL - também viradas para refugiados ucranianos
- Ataque a equipa da Fox News mata dois jornalistas e deixa terceiro ferido na região de Kiev
- Ucrânia aguarda pelo Tribunal Internacional de Justiça, sem grandes expectativas de êxito