“Não passarão” e “não há guerra”. Estas foram as palavras finais ouvidas na última emissão da Dozhd antes da equipa abandonar o estúdio em direto. Também conhecida como TV Rain, o popular canal era um dos últimos media liberais a emitir na Rússia. Há muito que as emissões estavam confinadas ao YouTube, consequência da linha critica ao Kremlin que mantinha desde a fundação. Agora, as emissões foram silenciadas por tempo indeterminado pela nova lei que prevê até 15 anos de prisão a quem divulgar o que as autoridades considerarem como notícias falsas.
“Esperamos mesmo que um dia voltemos a estar no ar. Como, onde ou em que plataforma ainda não sabemos como será”, disse a fundadora Natalya Sindeyeva. A CEO, que quando fundou a TV Rain em 2010 era uma proeminente figura da elite de Moscovo, é agora identificada pelas autoridades russas como “agente estrangeira” (termo usado pelo Kremlin para os dissidentes).
“Pela primeira vez não tenho esperança. Chorei a manhã toda na quarta-feira, antes de ir ao escritório para a reunião em que decidimos parar de emitir”, afirmou ao The Guardian. A jornalista não partilha a sua localização por preocupações de segurança e muitos dos seus colegas já abandonaram o país (o editor-chefe, por exemplo, estava há uma semana a receber ameaças de morte). “As pessoas estão a entrar em pânico, não sabem o que vem a seguir. E agora não há forma delas ouvirem as notícias que lhes poderiam dizer”, lamentou.
Mas as críticas à guerra e os apelos à paz espalham-se por vários quadrantes da sociedade russa. Do jornalismo e cultura ao desporto e mundo dos negócios, há cada vez mais figuras proeminentes a tomar uma posição pública.
A maioria recorre às redes sociais e evita críticas diretas a Putin. Nos últimos dias foram muitos os que partilharam quadrados negros nos seus perfis com a descrição “Ні війні or Нет войне” (“não à guerra”) acompanhada pelo emoji da bandeira da Ucrânia (🇺🇦).
Ao The Art Newspaper, o artista Dmitry Vilensky (parte do coletivo Chto Delat) afirmou que o governo russo tornou “quase impossível protestar contra o que está a acontecer”. “A maioria das pessoas na cena da arte contemporânea na Rússia não apoiam esta viragem reacionária na política cultural russa e certamente não apoiam qualquer ação militar e colonialismo na Ucrânia”, disse. “Mas por causa do estrito controlo da esfera pública, é difícil articular publicamente o desacordo sem ser em publicações nas redes sociais”.
“Não à guerra”: multiplicam-se apelos nas redes sociais
Fora da Rússia, Nadya Tolokonnikova, membro-fundador da banda de rock feminista Pussy Riot, há muito que é uma conhecida voz crítica de Putin. Agora, a ativista (que chegou a estar presa na sequência de um concerto-protesto organizado há dez anos) está a angariar fundos para organizações que ajudem os ucranianos deslocados ou em perigo, noticia a Smithsonian Magazine. “É óbvio que ele é um perigoso ditador e tem que ser travado”, disse a artista numa entrevista no final de fevereiro.
Já o rapper Oxxxymiron (considerado um dos artistas mais influentes da Rússia) publicou um vídeo de três minutos e meio no Instagram onde condena o ataque à Ucrânia. “Neste momento não sou capaz de estar em silêncio. Eu sei que a maioria dos russos são contra a guerra. Acredito que quanto mais pessoas expressarem a sua verdadeira opinião sobre esta guerra, mais rápido vamos ser capazes de travar este pesadelo”. O músico cancelou seis espetáculos que estavam esgotados em Moscovo e São Petersburgo em protesto.
O cantor Valery Meladze (nascido na Georgia e naturalizado russo) também publicou um vídeo no Instagram que já ultrapassou quatro milhões de visualizações. “Hoje aconteceu algo que não podia nem devia ter alguma vez acontecido”, disse. “A História vai julgar tudo isto um dia. Agora quero implorar que parem a ação militar e se sentem para negociar.”
Tal como os músicos, foram várias as personalidades que condenaram o ataque logo no dia em que foi lançado na semana passada. O jornalista e YouTuber Yuri Dudt (uma das personalidades da internet mais famosas da Rússia) disse que “não votou neste regime” nem na sua necessidade de criar um império e disse sentir-se envergonhado. Segundo o The Guardian, a publicação recebeu quase um milhão de gostos em 24 horas.
Ivan Urgant tem o seu programa noturno na televisão estatal russa suspenso desde 24 de fevereiro. O comediante e ator partilhou nas suas redes sociais um apelo: “não à guerra”, noticia a Vice.
Foi também esta a mensagem partilhada por Fedor Smolov. O avançado do Lokomotiv foi o primeiro futebolista a condenar o ataque.
Quase uma semana depois, o capitão da seleção russa Artem Dzyuba quebrou o silêncio em resposta às críticas de vários jogadores ucranianos e fãs nas redes sociais. Assumindo que não tinha intenção de comentar o tema por não ser um “especialista político”, criticou o “padrão duplo” que o obriga a falar. “Por que é que todos estão gritam que o desporto deve ficar fora da política, mas à primeira oportunidade, quando se trata da Rússia, este princípio é esquecido?” O jogador do Zenit, que classificou a guerra como “uma coisa assustadora” à qual se opõe, não condenou contudo o ataque e reafirmou o seu orgulho em ser russo.
O tenista Andrey Rublev também tomou a sua posição por escrito, mas não nas redes sociais. O tenista russo escreveu “sem guerra, por favor” na câmara que o estava a filmar quando passou à final da competição no Dubai.
Trabalhadores do setor das artes temem perder emprego
Seja por boicote ou por preocupações de segurança, o setor da cultura russo já estava a sofrer os efeitos da guerra. Vários espetáculos e exposições agendados na Rússia foram cancelados ou encerrados antecipadamente e a representação russa fora do país também foi afetada.
Na Bienal de Veneza, o pavilhão russo vai estar fechado. Os artistas Alexandra Sukhareva e Kirill Savchenkov, assim como o curador Raimundas Malasauskas, recusaram-se a participar na exposição para qual tinham sido selecionados para representar o país. “Não há lugar para a arte quando estão a morrer civis sob o fogo de mísseis, quando os cidadãos da Ucrânia estão escondidos em abrigos, quando os opositores russos estão a ser silenciados”, escreveram nas redes sociais.
Uma carta aberta a exigir o fim do ataque chegou a reunir 17 mil assinaturas de trabalhadores do setor da cultura. Desde então, vários dos assinantes têm sofrido pressões e represálias e pediram a remoção da sua assinatura, noticia o New York Times.
“Se fosse presa, poderia perder o meu emprego. Mas não por assinar uma carta aberta. Isto é uma nova realidade.”
Katya Dolinina, ex-gestora de dois teatros em Moscovo
Segundo relatos citados pela Artnet, o Museu de Arte Moderna de Moscovo terá alegadamente despedido os seus trabalhadores que subscreveram à missiva. Katya Dolinina, gestora de dois cinemas Moskino em Moscovo, foi pressionada a demitir-se por o seu nome constar da carta aberta. “Tive a opção de escrever um comunicado em como o meu nome apareceu na carta por engano. Recusei. Foi-me dito que fui a primeira [a ser despedida], mas não a última.”
“Esta carta não me parecia um passo arriscado”, acrescentou à Artnet. “Sabia que ir às manifestações seria problemático. Se fosse presa, poderia perder o meu emprego. Mas não por assinar uma carta aberta. Isto é uma nova realidade.”
“Tudo o que dizemos agora pode ser usado contra nós no futuro”, disse um trabalhador de um museu em anonimato à mesma publicação. “Não sabemos o que vai acontecer amanhã ou em duas horas.”
Já Elena Kovalskaya, diretora do Meyerhold Center (um teatro estatal em Moscovo), renunciou ao cargo como forma de protesto às primeiras horas da invasão. “Não é possível trabalhar para um assassino e receber um salário dele”, escreveu numa publicação no Facebook entretanto removida.
Milionários russos entre as vozes críticas
As vozes críticas chegam também da elite russa. Ksenia Sobchak, socialite filha do primeiro presidente da Câmara de São Petersburgo eleito democraticamente – com quem Putin trabalhou -, também publicou um quadrado negro. “Nós, os russos, vamos lidar com as consequências de hoje (24 de fevereiro) por muitos anos.”
Este meio também foi o meio escolhido por Sofia Abramovich, a socialite russa filha do oligarca dono do Chelsea. “Putin quer uma guerra com a Ucrânia. A maior e mais bem sucedida mentira da propaganda do Kremlin é que a maioria dos russos estão com Putin.”
O coro de vozes críticas começa também a estender-se aos oligarcas russos alvo de sanções pelo Ocidente. Mikhail Fridman é um dos homens mais ricos do mundo, tendo negócios nas áreas da banca, gás, petróleo e telecomunicações. Apesar de radicado na Rússia, nasceu numa das cidades que está sob ataque na Ucrânia.
“Os meus pais são cidadãos ucranianos e vivem em Lviv, a minha cidade favorita. Mas também passei grande parte da minha vida como cidadão da Rússia, a construir e a desenvolver negócios. Estou profundamente ligado aos povos ucraniano e russo e vejo o atual conflito como uma tragédia para ambos”, escreveu numa carta aos seus trabalhadores citada no Financial Times. “Esta crise vai custar vidas e prejudicar duas nações que são irmãs há centenas de anos. Embora uma solução pareça assustadoramente distante, só me posso juntar àqueles cujo desejo fervoroso é que o derrame de sangue termine”
Oleg Deripaska, o multimilionário que negocia alumínio e tem uma fortuna avaliada em 2,79 mil milhões de dólares, defendeu no Twitter que a “paz deve ser a prioridade” e “as negociações têm de começar o mais depressa possível”.
“Pessoas inocentes estão a morrer na Ucrânia agora, todos os dias, isso é impensável e inaceitável”, afirmou o banqueiro Oleg Tinkov, citado na Visão. “Os Estados deveriam gastar dinheiro no tratamento de pessoas, em pesquisas para curar o cancro, e não em guerra”. Segundo a Forbes, as ações do Tinkoff Bank caíram 90% desde o início do conflito.