O grande debate da Assembleia-Geral das Nações Unidas (ONU) arrancou esta terça-feira na sede da organização, em Nova Iorque. Sob o tema “Reconstruir a confiança e relançar a solidariedade global: acelerar a ação na Agenda 2030 e os seus Objetivos de Desenvolvimento Sustentável para a paz, a prosperidade, o progresso e a sustentabilidade para todos”, o secretário-geral das Nações Unidas iniciou a sessão com um discurso em que alerta para a necessidade de reformas institucionais.
António Guterres também criticou a Rússia pela invasão da Ucrânia e descreveu o aquecimento global como a “ameaça mais imediata ao nosso futuro”.
“O mundo mudou, as nossas instituições não. Não podemos resolver eficazmente os problemas tais como são se as instituições não refletem o mundo como ele é. Em vez de resolverem problemas, correm o risco de se tornarem parte do problema. As divisões estão a aprofundar-se. Divisões entre poderes económicos e militares, norte e sul, este e oeste”, disse o antigo primeiro-ministro português.
Nas críticas às instituições mundiais, Guterres não poupou aquela que lidera, dando como exemplo o Conselho de Segurança das Nações Unidas. Em defesa de reformas, aponta que a alternativa não é o status quo, mas “mais fragmentação”. A dicotomia é clara: “É reforma ou rutura”.
Apesar das menções a conflitos e escassez no apoio humanitário, a maior crise apontada por António Guterres prende-se com o ambiente. “Temos de estar determinados a combater a ameaça mais imediata ao nosso futuro: o aquecimento do nosso planeta. As alterações climáticas não são apenas mudanças no tempo. Estão a mudar a vida no nosso planeta, a afetar cada aspeto do nosso trabalho, a matar pessoas e a devastar comunidades”, observou.
Frisando que os últimos dias e meses foram os mais quentes de que há registo, apontou o dedo a quem toma decisões políticas: “não sei se todos os líderes estão a sentir o calor”. E deixou clara a responsabilidade dos países mais industrializados. “Os países do G20 são responsáveis por 80% das emissões de gases de estufa. Devem liderar, devem quebrar o vício dos combustíveis fósseis”, apelou.
Há ferramentas, falta determinação
Dizendo que as ferramentas e recursos para solucionar os desafios conjuntos já existem, Guterres aponta que “é preciso determinação” e que se cada país cumprisse as suas obrigações previstas na carta das Nações Unidas “o direito à paz seria garantido”. É neste ponto que surgem as críticas à Rússia.
“Quando os países quebram os compromissos, criam um mundo de insegurança para todos. Prova A: a invasão da Ucrânia pela Rússia”, lançou. Recordando as violações de direitos humanos, traumas causados a crianças e a destruição de sonhos, lembrou que as implicações se estendem além da Ucrânia. “As ameaças nucleares colocam-nos a todos em risco, ignorar tratados e convenções globais torna-nos a todos menos seguros.”
Na necessidade de aliviar o sofrimento dos civis em tempo de guerra, o secretário-geral mencionou a importância do acordo de exportação de cereais através do Mar Negro, que foi abandonado por Moscovo. “O mundo precisa de alimentos ucranianos e de alimentos e fertilizantes russos para estabilizar os mercados e garantir segurança alimentar e eu não vou desistir dos meus esforços para que isso aconteça”, disse, gerando uma onda de aplausos.
Também o presidente da 78.ª Assembleia-Geral das Nações Unidas, Dennis Francis, criticou as ações militares da Rússia, descrevendo que “essa guerra horrível libertou sofrimento incalculável e destruiu famílias, comunidades e vidas”. Francis remeteu também para o efeito da guerra em países em desenvolvimento, nomeadamente através de insegurança alimentar e mudanças nos preços da energia. “Todos queremos que esta guerra termine, é uma afronta a tudo o que esta organização e a carta da ONU representa. Precisamos de uma paz justa e sustentável na Ucrânia e em todo o mundo”, defendeu.
Lula defende que guerra na Ucrânia revela “incapacidade coletiva” de manter princípios da ONU
O primeiro líder nacional a falar foi o Presidente do Brasil. Lula da Silva focou-se em questões como a desigualdade e a insegurança alimentar. “Para vencer a desigualdade falta vontade política daqueles que governam o mundo”, defendeu.
Olhou também para o papel que pretende que o seu país tenha. “O Brasil está a reencontrar-se consigo mesmo, com a nossa região, com o mundo e o multilateralismo. O Brasil está de volta para dar a sua devida contribuição ao enfrentamento dos principais desafios globais.”
Lula abordou ainda as desigualdades do passado e o legado que deixaram. “Agir contra a mudança do clima implica pensar no amanhã e enfrentar desigualdades históricas. Os países ricos cresceram baseados num modelo com alta taxa de emissão de gases danosos ao clima. A urgência climática torna urgente uma correção de rumos e a implementação do que já foi acordado”, defendeu. Segundo o Presidente do Brasil, os países em desenvolvimento não pretendem repetir tal modelo.
Lula associou, em seguida, a sustentabilidade à paz. “Os conflitos armados são uma afronta à racionalidade humana. Conhecemos os horrores e sofrimento produzidos por todas as guerras. A promoção de uma cultura de paz é um dever para todos nós”, notou. Lamentou a persistência de disputas não resolvidas e o surgir de novas ameaças.
O chefe de Estado brasileiro mencionou ainda a guerra na Ucrânia: “escancara a nossa incapacidade coletiva de fazer prevalecer o propósito e princípios da ONU”. E acrescentou: “Não subestimamos as dificuldades em garantir a paz, mas nenhuma solução será duradoura se não for baseada no diálogo”.
Joe Biden quer gerir competição com a China “de forma responsável”
“Como Presidente dos Estados Unidos compreendo o dever do meu país em liderar neste momento crítico”, lançou o Presidente dos Estados Unidos no início da sua intervenção. Joe Biden descreve que os EUA ambicionam um mundo “mais seguro” e “próspero” e frisou: “sabemos que o nosso futuro está ligado ao vosso e que nenhuma nação consegue responder aos desafios atuais sozinho”.
Biden aponta que as gerações anteriores criaram instituições internacionais para combater os desafios do seu tempo e reconheceu a necessidade de reformas. “Para responder aos novos desafios, as nossas instituições devem ser atualizadas para manter a paz no mundo. Temos de trazer mais liderança que existe em todo o lado, especialmente de regiões que nem sempre foram totalmente incluídas”, disse.
Ao longo do seu discurso recordou que os Estados Unidos apoiam um alargamento do Conselho de Segurança da ONU, com o aumento do número de membros permanentes e não permanentes, dando a entender que está a fazer esforços nesse sentido. “Os EUA estão a consultar vários Estados-membros e continuaremos a fazer a nossa parte para impulsionar mais esforços de reforma”, comentou.
Sem ignorar as tensões com a China, Joe Biden disse reforçou aquele que é um dos grandes objetivos dos EUA: “gerir de forma responsável a competição entre os nossos países para não se tornar num conflito”. E destacou que não pretende cortar laços, mas reduzir riscos.
As críticas à Rússia surgiram já numa fase avançada do seu discurso, onde referiu que a Assembleia-Geral das Nações Unidas conta pelo segundo ano consecutivo com “a sombra da guerra”. “A Rússia é o único entrave à paz. O preço da Rússia pela paz é a capitulação da Ucrânia, o território ucraniano e as crianças ucranianas”, comentou o líder americano.
Lançando a pergunta “se abandonarmos os princípios fundamentais da Carta das Nações Unidas para apaziguar um agressor, poderá algum Estado-membro neste organismo sentir-se confiante de que está protegido?”, Biden não tardou em responder: “não”. “Temos de enfrentar este agressor hoje e dissuadir os possíveis agressores do futuro”, destacou, frisando o compromisso dos Estados Unidos em apoiar o povo ucraniano na defesa da sua soberania e liberdade.
“Não é apenas um investimento no futuro da Ucrânia, mas no de todos os países que procuram um mundo governado por regras que se aplicam de igual forma a todas as nações”, afirmou.
Polónia defende que Vladimir Putin “não terá sucesso”
Andrzej Duda, Presidente da Polónia, destacou o perigo que se sente na atualidade e o impacto da invasão da Rússia à Ucrânia. “Nós, polacos, sabemos bem que não devemos dar a paz por adquirida”, declarou. Recordando as invasões sofridas na Segunda Guerra Mundial, Duda afirmou que a história da Polónia é “um testemunho de que crimes e perseguição não são capazes de suprimir o verdadeiro espírito de liberdade”.
“Escravatura, imperialismo e neo-colonialismo são uma negação de liberdade tanto quanto sonhos loucos de dominar os outros. Quando lançou a guerra na Ucrânia, Vladimir Putin queria restaurar o império russo para dividir o mundo e tornar a Europa sistematicamente dependente dos seus materiais. Não teve sucesso. Acredito que não terá sucesso”, comentou.
Defendendo a necessidade de responsabilizar a Rússia pelas suas ações, Duda reiterou o apoio da Polónia à investigação de violações de direitos humanos no contexto da guerra e preservação de provas. E apelou a que a integridade territorial da Ucrânia seja restaurada, sem que a guerra se transforme num conflito congelado.
“A Rússia tenta continuamente moldar a opinião internacional pública através da construção de uma falsa visão da realidade. Na Polónia isto não é uma surpresa, mas o mundo está descobrir a escala da manipulação e desinformação”, acusou, acrescentando que o seu país também está a ser afetado. E respondeu às críticas ao fornecimento de armamento à Ucrânia dizendo que se trata de uma “falsa lógica”.
Cuba critica “bloqueio económico asfixiante”
Miguel Díaz-Canel Bermúdez, Presidente de Cuba, apelou a mudanças nos instrumentos de dívidas e criticou as sanções impostas pelos Estados Unidos ao país. “Enquanto as nações mais ricas falham o compromisso de atribuírem pelo menos 0,7% do PIB nacional a apoio ao desenvolvimento, os países do sul têm de gastar até 14% das suas receitas a pagar juros associados a dívida externa”, lamentou.
A par do financiamento dos países do sul global, Bermúdez classificou sanções como “medidas unilaterais coercivas” que se tornaram “prática de Estados poderosos que pretendem atuar como juízes universais” ao “enfraquecer” economias e “subjugar estados soberanos”. Apontando que Cuba não foi o primeiro país a ser sujeito a sanções, alertou que é aquele que as enfrenta há mais tempo.
“Cuba sofre um bloqueio económico asfixiante há 60 anos, desenhado para depreciar o seu nível de vida, perpetuar a escassez de alimentos e medicamentos e outros bens essenciais e prejudicar o seu potencial de desenvolvimento. São esses os objetivos da coerção económica e pressão dos Estados Unidos contra Cuba em violação da lei internacional e da Carta da ONU”, acusou.
Conselho de Segurança da ONU “tornou-se um campo de batalha", criticou Erdogan
A intervenção de Recep Tayyip Erdoğan, Presidente da Turquia, abrangeu várias questões: conflitos, terrorismo, alterações climáticas. O país foi abalado este ano por sismos que provocaram a morte de dezenas de milhares de pessoas e o incidente não foi esquecido, com Erdogan a agradecer à comunidade internacional pelo apoio prestado durante a tragédia.
A nível político, o líder turco concordou com a necessidade de reformas dentro nas Nações Unidas e apontou que o Conselho de Segurança se tornou “um campo de batalha para as estratégias políticas de apenas cinco países”. Uma observação que remete para os membros permanentes da organização: Estados Unidos, China, Rússia, França e Reino Unido.
A situação na Ucrânia também foi alvo de foco. “Desde o início da guerra temos procurado manter os nossos amigos ucranianos e russos à mesa, com a tese de que a guerra não terá vencedores e a paz não tem perdedores. Vamos aumentar os nossos esforços para acabar a guerra através da diplomacia e diálogo, com base na independência e integridade territorial da Ucrânia”, declarou Erdogan.
Zelensky acusa Rússia de “genocídio” e diz que “terroristas não têm direito de possuir armas nucleares”
Recebido sob fortes aplausos e trajando o habitual verde-tropa, o Presidente da Ucrânia disse, referindo-se à Rússia, que “os terroristas não têm o direito de possuir armas nucleares”. Só através da união é possível prevenir guerras no mundo, começou por dizer. De semblante carregado e discurso assertivo, Zelensky acusou a Rússia de “genocídio” por raptar milhares de crianças ucranianas e doutriná-las contra o seu país de origem. “Estamos a tentar trazer as crianças de volta a casa, mas o tempo vai passando. O que lhes acontecerá?”, perguntou. Essas crianças na Rússia são instruídas a “odiar a Ucrânia”, prosseguiu, e “todas os laços com as suas famílias são quebrados”. “E isto é claramente um genocídio”, sentenciou.
Num discurso de 15 minutos, Zelensky acusou igualmente a Rússia de usar a fome como arma, referindo, que, desde o início da guerra, os portos ucranianos se encontram “bloqueados”. No caso particular dos portos do rio Danúbio, continuam a ser alvo de ataques de drones, especificou. E, prosseguiu, a impossibilidade de escoamento dos cereais conduz a um aumento de preços dos alimentos em todo o mundo. Também apontou o dedo aos ‘falsos’ amigos por causa do transporte de cereais: “é alarmante como alguns dos nossos amigos na Europa se fingem solidários”. “E pode parecer que estão a cumprir o seu papel, mas, na verdade, estão a ajudar a Rússia”, denunciou.
O Presidente ucraniano instou o mundo a unir-se contra a agressão russa: a invasão da Ucrânia, sublinhou, é “uma ameaça existencial à ordem mundial”, equiparável às armas nucleares. A “nossa unidade” é necessária para que a comunidade internacional se certifique de que “a agressão não acontecerá novamente”, defendeu. Zelensky apelou ainda à pressão internacional para a implementação da fórmula de paz ucraniana, que inclui, entre outros pontos, a retirada das tropas russas dos territórios ucranianos e o estabelecimento de um tribunal especial para o julgamento de crimes de guerra. “Pela primeira vez na história moderna, temos uma verdadeira oportunidade de acabar com a agressão nos termos da nação que foi atacada”, declarou.
Zelensky aconselhou “prudência”, sublinhando que “não se pode confiar no mal”. “Perguntem a Prigozhin se devemos confiar nas promessas de Putin”, afirmou, referindo-se ao antigo líder do Grupo Wagner, que morreu num desastre de avião no mês passado, e responsabilizando assim o Presidente russo pela morte do mercenário.
A cada década que passa, a Rússia começa “uma nova guerra”, acusou. “A Rússia engoliu a Bielorrússia, está a ameaçar o Cazaquistão e ameaça os Estados Bálticos”, disse, lembrando ainda que as tropas russas já ocupam partes da Moldova e da Geórgia e combateram na Síria, transformando este último em “ruínas”. E sugeriu que se o Kremlin não for travado, “alguns lugares da Assembleia-Geral podem ficar vazios”.
A rematar o discurso, Zelensky separou claramente as águas: enquanto a Rússia “empurra o mundo para a guerra final”, a Ucrânia trata de assegurar que “mais ninguém atacará outros países no futuro”.
Pela Hungria discursou Katalin Novák, cujo cargo de Presidente é largamente reconhecido como simbólico. Apesar de ausente nesta Assembleia-Geral, o discurso habitual do primeiro-ministro, Viktor Orbán, foi secundado por Novák. Contra a crise demográfica e as ideologias “antifamília”, a Presidente húngara apelou ao aumento da natalidade. “De que serve cuidar da Terra se não tivermos filhos e netos a quem a passar?”, indagou, enfatizando um final infeliz para a Humanidade se a ausência de filhos se generalizar e o número de nascimentos continuar a ser inferior ao de mortes: “o nosso querido mundo será destroçado”.