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“Metade protestos, metade pornografia”: como o exército de censores chineses "limpa" a Internet das manifestações contra Xi

Sempre que surgem protestos contra as medidas severas que a China está a impor, há quase três anos, para controlar a covid-19, a censura do Estado entra em ação. Mas os ativistas também têm formas veladas de ir mantendo o discurso de protesto na internet

Protestos na Universidade Chinesa de Hong Kong contra as restrições impostas pelo Governo chinês devido à covid-19
PETER PARKS/Getty Images

Os protestos começaram em Urumqi, capital da região de Xinjiang, no extremo ocidental da China, depois de dez pessoas terem morrido num incêndio num bloco de apartamentos por culpa das restrições à propagação da covid-19. Estas não terão permitido uma evacuação dos espaços a tempo de evitar a tragédia, nem uma ação eficaz dos bombeiros, que lançaram água contra o edifício a uma distância demasiado grande, por causa das barricadas impostas à circulação e dos carros parados nas ruas, os carros das pessoas que estão fechadas em casa há meses.

A China está aprisionada pelas políticas “covid zero”, e a população parece ter atingido o limite do que podia suportar. São já três anos de confinamentos muito duros, com poucos balões de oxigénio para a saúde mental.

Vídeos e fotos dos protestos em Xinjiang começaram a circular rapidamente em plataformas como WeChat e Weibo e milhares de pessoas viram os seus vizinhos a derrubar as barreiras à volta dos bairros, a gritar da janela contra o Governo. Juntaram-se a eles.

“Eu vi isso”… ou talvez não

Esta segunda-feira, nestas duas redes sociais, as pesquisas por pontos de protesto como “Xinjiang” e “Pequim”, já não davam qualquer resultado. Até frases menos óbvias, como “eu vi isso” – referência a algo que foi retirado da internet, mas que alguém conseguiu ainda ver e copiar – também foram censuradas.

Pouco depois do início dos protestos em Xinjiang, uma região muito controlada por ser onde se concentram os membros da minoria muçulmana uigure, já Pequim, Xangai, Nanjing, Wuhan e Chengdu se tinham juntado às manifestações. E, como noutros pontos de ebulição, o exército de censores online foi chamado a intervir.

Em setembro, quando a população uigure se queixava nas redes sociais de estar a ser abandonada à fome e à doença nas suas casas, muitas fechadas com barras de ferro, aconteceu o mesmo: muitos vídeos, críticas e pedidos de ajuda foram apagados à medida que se tornavam mais e mais partilhados nas principais redes sociais chinesas.

Na altura, Nurgul Sawut, ativista uigure residente na Austrália, falou com o Expresso sobre o caso. “Os vídeos que os cidadãos das cidades em confinamento publicam nas redes sociais não permanecem mais de meia hora na internet, devido à ação meticulosa da censura”, disse.

Clausura sem aviso prévio

Contudo, uma rede de voluntários por todo o mundo esforça-se por descarregar conteúdos para poder catalogá-los e denunciar o que se passa. “Estamos a falar de completa clausura, para a qual as pessoas não se prepararam, com comida e medicamentos, porque não foram avisadas com antecedência de que iam ser fechadas em casa, literalmente. O que vemos são portas fechadas com placas de metal fundido e pessoas que não recebem comida nutritiva todos os dias, bebés que não podem comer ainda a comida dos adultos estão a ficar extremamente doentes, pessoas que não conseguem encontrar medicamentos para os doentes crónicos que têm na família pedem ajuda em desespero”.

O método não é totalmente eficaz. A partir de um ponto, a quantidade de publicações é demasiado brutal para que a censura consiga limpar pro completo qualquer referência a descontentamento da internet. Contribuiu, todavia, para fabricar a ideia de que os protestos não são assim tão significativos.

Através de métodos que permitem evitar a censura e chegar às redes sociais banidas na China, como o Instagram ou o Twitter, os ativistas estão a fazer chegar os seus protestos ao mundo.

As comunidades chinesas residentes em Melbourne organizaram uma homenagem aos mortos num incêndio em Urumqi, em Xinjiang. As medidas de confinamento terão prejudicado o acesso dos bombeiros
Tamati Smith

Nem toda a gente utiliza as chamadas VPN (Virtual Private Networks, em inglês, redes de acesso privado a páginas da internet), alguns ativistas continuam a recorrer sobretudo às redes chinesas, mas desenvolveram formas de comentar e denunciar assuntos através de eufemismos, códigos, até palavras com parecenças fonéticas às que queriam realmente dizer.

Quando surgiu o movimento #MeToo contra o abuso sexual, os chineses escreviam “coelhinho de arroz” porque, pronunciado, assemelha-se à expressão “Me Too”, que foi banida. Desta vez, as pessoas começaram a usar repetições de bom, muito bem ou vencedores como forma sarcástica ou passivo-agressiva de destacar a incapacidade do povo chinês de expressar qualquer forma de crítica.

“Pequim parece estar a usar a tática da censura de palavras-chave, mas a quantidade de informação que passa para fora da Grande Muralha é definitivamente significativa”, disse à televisão Al-Jazeera Stevie Zhang, editor da First Draft News, organização sem fins lucrativos dedicada ao combate à desinformação online.

Twitter com falta de funcionários para controlar propaganda

A rede social Twitter está a funcionar com serviços reduzidos, depois de Elon Musk ter despedido milhares de trabalhadores, incluindo das equipas que identificam propaganda, spam e contas falsas. No domingo, segundo informações recolhidas junto de funcionários do Twitter pelo jornal “The Washington Post”, numerosas contas chinesas sem atividade há muitos meses “voltaram à vida” apenas para inundar a rede social com conteúdo desenhado para dissolver a prevalência de publicações sobre os protestos.

A maioria das publicações aludia a acompanhantes de luxo, ou outros serviços “para adultos” com referência às cidades onde se poderia contratá-los. Ora, durante horas, quem procurasse saber mais sobre os protestos através da pesquisa de palavras-chave como “Xangai” ou “Pequim” iria apenas ver anúncios, nada sobre manifestações, onde já se pede o afastamento do Presidente, exigência sem precedentes nos últimos 30 anos.

Protestos contra a política de "zero covid# em Beijing, na China, dia 28 de novembro
Kevin Frayer

Xi Jinping continua a defender um controlo férreo da covid-19, mas já há analistas que se interrogam sobre uma possível falha de leitura política, tanto dele como dos seus mais próximos. Não terão conseguido entender o nível de descontentamento entre a população.

“É um problema conhecido, com que a nossa equipa lida de forma manual e individualizada, além de termos processos automáticos para o mesmo efeito”, disse um funcionário do Twitter sobre a avalanche de spam.

Entre despedimentos e renúncias, a equipa da rede de Musk passou de 7500 funcionários para 2000, estimam os que ainda lá trabalham. Algumas áreas, incluindo as que lidam com questões de direitos humanos, segurança e operações danosas de influência estrangeira, foram reduzidos a “uma mão-cheia” de funcionários, ou dissolvidas.

“A campanha de domingo foi outra prova de que há buracos ainda maiores por preencher. Todos os analistas que observavam a influência externa da China no Twitter saíram pelo seu próprio pé”, disse a mesma fonte, pedindo anonimato. Não foi o Twitter que primeiramente identificou o fluxo de conteúdo nocivo, mas sim os departamentos de informática da Universidade de Stanford e outros institutos.

Domingo à noite o problema estava a caminho de ser resolvido. “Metade protestos, metade pornografia”, disse ao “The Washington Post” uma pessoa que trabalha na área de segurança para o Governo dos Estados Unidos. “Recuei até à manhã [de domingo] e era só pornografia.”

No total houve 40.052 novos casos de covid-19 no domingo. Na véspera, tinham sido identificados 39.506 casos, sendo que domingo foi o quinto dia consecutivo em que o número de infetados cresceu.