“A decisão mais controversa da história do Supremo”: assim ficou conhecida nos Estados Unidos a sentença, ditada em janeiro de 1973, com sete votos a favor e dois contra, que reconheceu constitucionalmente o direito de interromper voluntariamente a gravidez até à 24.ª semana de gestação.
O processo Roe vs Wade fez história e tornou-se um símbolo da luta feminista na sociedade norte-americana. Quase meio século volvido, o caso ainda continua a dar muito que falar e o Supremo Tribunal prepara-se para anular a sua própria decisão e revogar o direito ao aborto nos EUA, como avança o jornal “Politico”.
É preciso recuar até 1969 para entender a história, altura em que Norma McCorvey, uma jovem de 21 anos, residente na cidade de Dallas, descobriu que estava grávida pela terceira vez.
Norma nunca teve uma vida fácil: cresceu num ambiente muito pobre, sem pai e era vítima de abusos psicológicos por parte da mãe. Casou-se com 16 anos e teve a primeira filha com 17. Depois, já com problemas de vícios associados a álcool e drogas, nasceu a segunda.
Por falta de condições, a jovem, divorciada, não se sentia preparada para dar à luz e criar a terceira filha. Norma McCorvey pretendia abortar, mas tal prática era proibida no estado do Texas — exceto se servisse para salvar a vida da mulher.
Foi então que, em 1970, entrou em cena Linda Coffee, uma advogada de 26 anos, acabada de sair da universidade. Mesmo sem experiência, aceitou defender o caso em tribunal, no emblemático processo contra Henry Wade, promotor do condado de Dallas.
A polémica disputa judicial arrastou-se e não chegou a tempo para Norma McCorvey, que perante a Justiça se apresentava sob o pseudónimo Jane Roe. A jovem perdeu sempre nas primeiras instâncias e a terceira filha acabou mesmo por nascer em junho de 1970, tendo sido dada para adoção.
Shelley Lee Thornton nunca manteve contacto com a mãe biológica e a sua identidade permaneceu secreta durante muito tempo, até à publicação do livro “The Family Roe: An American Story”, editado em 2021 e da autoria de Joshua Prager, jornalista que durante 11 anos uniu as pontas soltas da história.
Só em 1973, quando Jane Roe já era representada por outra advogada, Sarah Weddington, de 27 anos, é que o Supremo Tribunal deliberou que a tese do promotor Henry Wade era “totalmente sem mérito desde o início” e sustentou que a Constituição dos EUA consagrava o direito da mulher a fazer um aborto.
A advogada Sarah Weddington ficou com todos os louros do célebre caso que mudou o curso da história nos Estados Unidos e, embalada pela fama do caso, chegou mesmo a assessora do Presidente Jimmy Carter, durante 1977 e 1981.
Em 1997, McCorvey, acabou por mudar de lado no debate sobre o aborto e fundou a organização pró-vida denominada “Roe No More”. Acabou por morrer a 18 de fevereiro de 2017, aos 69 anos.
A discussão sobre a interrupção voluntária da gravidez, essa, está mais viva do que nunca nos Estados Unidos e os direitos das mulheres podem ser atirados para o contexto de 1973, quando cada estado era livre de proibir ou autorizar a realização de abortos.
Atualmente, o Supremo Tribunal dos EUA é constituído por seis juízes conservadores e três liberais, uma maioria solidificada por Donald Trump, que durante a sua estadia na Casa Branca nomeou três magistrados conservadores.