Internacional

Supremo Tribunal da Rússia fecha ONG que investigava purgas estalinistas: é a última vítima da "lei dos agentes estrangeiros", mas há mais

A associação Memorial Internacional é mais antiga do que a Federação Russa: nasceu em 1988 para tentar documentar os nomes e as histórias de quem sofreu na chamada Grande Purga de Estaline. Como recebe dinheiro de fora do país, foi considerada "agente estrangeiro" e, esta terça-feira, recebeu ordem para fechar

Omer Messinger/Getty Images

O Supremo Tribunal da Rússia decidiu esta terça-feira mandar fechar a mais antiga organização não-governamental do país, a Memorial Internacional, criada no fim do anos 80 para documentar, numa base de dados, a repressão política sob o regime soviético e os nomes das pessoas mortas nos gulags durante o período estalinista.

É mais um exemplo da aplicação da chamada “lei dos agentes estrangeiros”, que tem penalizado organizações não-governamentais (ONG) com posicionamentos políticos contrários aos do Kremlin, com a justificação de que o dinheiro que recebem vem de fora do país, e por isso essas ONGs podem ser uma ameaça à segurança nacional.

A lei, oficialmente designada de “Atos Legislativos da Federação Russa relativos à regulamentação das atividades de organizações sem fins lucrativos que desempenham as funções de um agente estrangeiro", é de 2012, mas desde então tem sofrido várias modificações para incluir um número cada vez mais amplo de potenciais prevaricadores. Originalmente, servia para identificar e investigar as organizações que recebem doações do exterior mas agora qualquer jornalista, em nome individual, mas também ativistas, e até professores de escolas internacionais que expressem as suas opiniões nas redes sociais podem ser alvo de processos criminais.

Nas declarações finais, segundo o site de notícias “Medusa”, os procuradores acusaram o Memorial de “criar uma imagem falsa da URSS como um estado terrorista” e disseram que o grupo “branqueia e reabilita criminosos nazis”. Durante uma reunião recente com o Conselho Presidencial de Direitos Humanos, o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, respondeu a uma pergunta sobre o caso contra esta organização e referiu que, nas suas bases de dados, havia três conhecidos nazis na lista de vítimas dos anos da Grande Purga de Estaline. Os membros da Memorial disseram que a escassez de recursos torna os erros mais prováveis mas que os investigadores corrigem rapidamente qualquer imprecisão.

Os advogados do Memorial negam as acusações, e vão recorrer até às últimas instâncias, ou seja, até ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos, se necessário.

Em julho, a rádio pública norte-americana (NPR), contou a história de Darya Apakhonchich, uma professora de russo para estrangeiros de 36 anos, que foi considerada “agente estrangeira” por causa das opiniões “subversivas” que colocava nas redes sociais. A sua casa foi totalmente revistada, os computadores e telemóveis da família confiscados e tudo o que Apakhonchich escreve publicamente aparece com uma marca para avisar o restante público de que aquela opinião pertence a um “agente estrangeiro”. Também Lev Ponomaryov, ativista pelos direitos humanos há mais de três décadas, é mais um nome recentemente adicionado à lista, que é pública.

Entre os meios de comunicação nessa lista contam a Radio Free Europe, o site de notícias “Meduza”, registado na Letónia, o grupo de jornalistas de investigação “Bellingcat” e vários outros meios, de televisões a sites, que ficaram conhecidos pelos seus trabalhos críticos do regime do Presidente Vladimir Putin.

Em junho, o site de notícias de economia “VTimes”, foi obrigado a fechar: o rótulo de “agente estrangeiro” que a empresa foi obrigada a colocar nos conteúdos, matou o negócio. A Radio Free Europe enfrenta multas que já rondam os três milhões de dólares multas por se recusar a fazer o mesmo às notícias que publica.

Vladimir Putin compara esta lei à que existe em outros países do mundo, incluindo nos Estados Unidos, mas efetivamente não existem rótulos especiais aplicados aos jornais ou associações que têm posições contrárias ao Executivo que se senta em Washington. No papel, as leis são parecidas, a sua utilização diverge. Um dos exemplos utilizados por Putin e outros membros próximos do Kremlin para tentar comparar as realidades é o caso de Maria Butina, uma cidadã russa que esteve presa um ano nos Estados Unidos por ter infiltrado uma organização de defesa do direito de porte de arma com intenção de influenciar membros do Partido Republicano a adotarem posições mais simpáticas com o Kremlin. O problema com esta comparação é que Butina declarou-se culpada.

"Desde 2012, o Governo russo tem usado a lei dos 'agentes estrangeiros' para demonizar grupos independentes que aceitam financiamento estrangeiro e defendem certas causas de forma pública, especialmente aquelas que de alguma forma desafiam as políticas e ações governamentais", disse a Human Rights Watch em novembro de 2020. "Na Rússia, o termo 'agente estrangeiro' tem uma forte conotação negativa, semelhante a 'traidor'."

Quando a lei russa surgiu numa reunião do conselho de direitos humanos do Kremlin em dezembro, Putin disse que era necessário que a Rússia designasse indivíduos como agentes estrangeiros porque "algumas pessoas estão simplesmente a inventar formas de ganhar dinheiro do exterior para sustentar atividades". E em entrevista à NBC explicou porque é que isso é um problema: "Temos de prevenir estas supostas organizações da sociedade civil de interferir com os nossos assuntos domésticos e por isso adotámos as leis e as medidas necessárias”.