Internacional

As estranhas contradições da Casa Branca sobre a saúde de Trump

Médico do presidente disse primeiro que o diagnóstico de Trump tinha acontecido há "72 horas", o que fazia com que Trump tivesse sido diagnosticado na quarta-feira. Depois desmentiu. Chefe de gabinete foi apanhado a dar informações contrárias às do médico num vídeo em off the record. Mas não só...

Donald Trump a embarcar no Marine One, para ser internado com sintomas de covid-19
LEAH MILLIS

Desorientação na mensagem ou confusão premeditada? Ninguém tem a resposta. Durante o dia de sábado foram várias as informações contraditórias sobre a saúde, a linha do tempo e os cuidados que o presidente dos Estados Unidos obteve durante os últimos dias - tudo a partir da Casa Branca.

O médico de Donald Trump, Sean Conley, deu uma conferência de imprensa que levantou mais questões do que certezas e precisou de se corrigir horas depois para acalmar as dúvidas. Não acalmou. O chefe de gabinete, Mark Meadows, havia de aparecer num vídeo a pedir para não ser citado numa informação que contradizia o que o médico tinha acabado de dizer. Por fim, para serenar os ânimos, Donald Trump apareceu num vídeo de quatro minutos a dizer que se sente melhor e que voltará em breve.

Um dia louco na Casa Branca que levanta questões não só sobre o estado de saúde de Trump como sobre segurança nacional, dizem peritos americanos. Afinal, quando soube Trump que estava infetado com SARS CoV2? Antes do debate com Joe Biden? Foi a eventos já tendo um teste positivo? Precisou de oxigénio? Está livre de perigo? Foi o dia da apresentação da escolha de Trump para o Supremo, Amy Coney Barrett, o evento que levou a que vários republicanos ficassem infetados?

Quando foi diagnosticado?

Foi a principal dúvida levantada depois da conferência de imprensa do médico do Presidente ontem de manhã (cerca das 17h em Lisboa). Numa declaração inicial lida, Conley disse aos jornalistas que passavam "72h desde o diagnóstico" da infeção pelo coronavirus. Passou a palavra a outro médico que acrescentou mais uma informação: que o medicamento experimental, da Regeneron, tinha sido administrado pela primeira vez "havia 48 horas".

Àquela hora, a Casa Branca só tinha tornado público o estado de Trump havia 36 horas, na quinta-feira de madrugada.

Perante a incongruência, os jornalistas questionaram Conley sobre a linha do tempo: se tinha falado em 72 horas, isso colocava o diagnóstico de Trump na quarta-feira de manhã, o dia a seguir ao debate com Joe Biden. Conley não foi direto ao assunto e referiu que na quinta-feira tinha sido repetido o teste e confirmado o diagnóstico (Trump é testado todos os dias, bem como o pessoal da Casa Branca, com uns testes rápidos). Na conferência de imprensa, Conley recusou sempre dizer quando tinha sido o último teste negativo de Donald Trump. E aqui pode estar a chave da discussão.

Logo depois da conferência de imprensa, vários jornalistas dão conta de uma fonte da Casa Branca a dizer que Conley não se referia a "72 horas" mas ao "dia três" de infeção (a lógica é a de que quinta-feira é o dia um, sexta-feira dia dois, e sábado dia três). Horas mais tarde, essa informação seria dada por escrito e assinada por Sean Conley. Mas com mais uma incongruência: Conley desmente-se dizendo que não queria dizer "72 horas" mas "dia 3" e que não queria ter dito "48 horas" mas "dia dois". Acontece que não foi Conley a dar a informação das 48 horas, mas outro médico. Como assume no desmentido algo que sabia não ter dito? Acresce ainda às dúvidas sobre a credibilidade da Casa Branca que nessa informação escrita há erros factuais no nome do medicamento que foi administrado a Trump. Se foi o médico a escrever, não saberia?

Há outro facto a acrescentar: Chris Wallace, o jornalista da Fox News que moderou o debate entre Trump e Biden, informou logo na sexta-feira que Trump não tinha chegado ao local do debate a tempo de ser testado (terça-feira à noite).

Mais um facto, Hope Hicks, a conselheira de Trump que foi a primeira a ter diagnóstico positivo (quinta-feira), mostrou sintomas, de acordo com várias fontes citadas pelo "The New York Times", na quarta-feira, durante um comício no Minnesota, e foi posta de quarentena logo no regresso, a bordo do Air Force One. Se havia dúvidas sobre uma das mais próximas conselheiras de Trump, que tinha viajado durante várias vezes nessa semana com o Presidente, incluindo na viagem para Cleveland para o debate com Biden, qual a razão para Trump apenas ter sido testado um dia depois?

Todas estas contradições levantaram perguntas, sendo a principal: quando foi o último teste negativo? Sem resposta.

Está bem ou nem por isso?

Tudo começa na conferência de imprensa do médico do presidente. Sean Conley informou que Trump não tinha tido febre nas últimas 24 horas (não referindo se era resultado da medicação ou se a febre desapareceu naturalmente), que estava sem receber oxigénio de forma artificial, e não tinha dificuldade em respirar. Tudo “está a correr bem”, disse. O médico tentou passar uma mensagem de tranquilidade, dizendo que Trump tinha sido hospitalizado porque era "o presidente dos Estados Unidos" e como tal havia que tomar precauções. Disse ainda que estavam a ser administrados medicamentos a Trump numa fase mais inicial quando comparado com as decisões em relação a outros pacientes.

Uma mensagem de tranquilidade sobre o estado de saúde de Trump que seria arrasada minutos depois por uma fonte anónima da Casa Branca. Os vários jornalistas que cobrem a Casa Branca receberam um email dessa fonte anónima, mas de uma conta oficial da equipa de Trump, com informações que contradiziam o que Conley tinha acabado de dizer. Dizia o email que o estado de Trump inspirava "preocupação" porque os sinais vitais das últimas 24 horas (de sexta-feira) eram "preocupantes" e que as próximas 48 horas seriam críticas. "Não está ainda num caminho claro para uma recuperação plena", escrevia a mesma fonte.

Minutos depois de alguns orgãos noticiarem esta percepção da Casa Branca, um vídeo do feed de uma televisão é libertado e nele aparece o chefe de gabinete de Trump, Mark Meadows, a pedir aos jornalistas que estavam presentes no hospital de Walter Reed (onde tinha acontecido a conferência de imprensa do médico) para não lhe atribuirem a citação. As câmaras tinham continuado a enviar as imagens para as redações, como fazem normalmente quando se preparam para os diretos, e Meadows é "apanhado" a falar com os jornalistas. Tanto o New York Times como a Associated Press identificam Meadows como a fonte daquela informação que contradizia o que o médico tinha acabado de contar.

Mas o enredo não fica por aqui. Mais tarde, Meadows contradiz de novo o que havia sido dito pelo médico, de que Trump tinha sido internado por precaução. Em entrevista à Fox News, o chefe de gabinete de Trump disse que na sexta-feira de manhã estavam "preocupados" com o estado de saúde de Trump e que tinha "melhorado inacreditavelmente".

O New York Times conta que Trump ficou furioso com Meadows e que decidiu dar mostra de que está bem. Foi o que fez. A primeira aparição foi a enviar tweets a agradecer os tratamentos em Walter Reed, depois, já sábado à noite, num vídeo de quatro minutos. Também ontem à noite, o médico envia nova nota escrita a dizer que Trump esteve a trabalhar durante a tarde e para completar o ramo de notícias para passar a mensagem que Trump está bem, a Casa Branca divulga fotografias de Trump a trabalhar. Um ponto importante, dado que muitos se perguntam o porquê de Trump não passar as suas competências de presidente para o vice-presidente Mike Pence.

Precisou ou não de oxigénio?

Durante o dia de ontem, vários meios de comunicação americanos foram dando conta que Donald Trump tinha sentido dificuldades em respirar e precisado de oxigénio na sexta-feira, ainda na Casa Branca, antes de ser transferido para o Hospital militar de Walter Reed.

Na conferência de imprensa do médico - o único momento em que houve possibilidade de os jornalistas poderem fazer perguntas a um responsável da equipa de Trump - Sean Conley esquivou-se constantemente à pergunta, repetindo que "neste momento" (sábado de manhã) não tinha necessitado e que na sexta-feira, enquanto esteve com a equipa médica, também não. Perante a insistência dos jornalistas sobre se alguma vez desde que tinha sido diagnosticado tinha necessitado de oxigénio para respirar, Conley respondeu de novo com o momento atual, dizendo que Trump estava com bons níveis de saturação de oxigénio.

Na última atualização da noite (o médico de Trump vai libertando informação escrita sobre o estado de saúde), Conley voltou ao assunto e escreveu que Trump "continua livre e sem necessidade de oxigénio suplementar, com níveis de saturação de 96% a 98% todo o dia".

Apareceu em eventos já positivo?

Esta é uma das grandes dúvidas. Se a verdade for a primeira timeline dada pelo médico, a resposta é sim. Apareceu num comício no Minnesota e numa angariação de fundos organizada num dos seus campos de golfe. Se a verdade for a versão corrigida, de que só soube quinta-feira de madrugada, a resposta é não. Uma dúvida que permanece.

Ainda não é certo onde terá sido Trump infetado, mas os olhos dos media americanos estão postos num evento no último sábado, em plena Casa Branca, o evento em Rose Garden. No jardim que dá para a Sala Oval, cerca de uma centena de republicanos reuniram-se para a apresentação de Amy Conley Barrett, a escolha de Trump para o Supremo, depois da morte de Ruth Bader Ginsberg. Várias pessoas presentes nesse evento testaram positivo nas últimas horas: além de Trump e de Melania, dois senadores republicanos (já são três, mas o terceiro não foi a este evento), o reverendo John Jenkins e a conselheira Kellyanne Conway.

Nessa apresentação, há imagens de muita confusão, de desrespeito pela utilização de máscaras e de distanciamento social. Mike Pence, o vice-presidente dos EUA, estava presente na primeira fila, rodeado de alguns republicanos que testaram positivo, mas acusou negativo no teste que realizou.

Há outro momento, porém, debaixo dos holofotes: a preparação do debate com Joe Biden, na terça-feira. Além de Trump, Hope Hicks e o governador Chris Christie testaram positivo e ambos estiveram juntos durante horas na preparação do debate. Resta saber se Rudolph Giuliani, também presente, testou positivo. O "Washington Post" conta ainda que durante o debate, os convidados de Trump se recusaram a cumprir as regras e permaneceram sem máscara.

A Casa Branca ficou de fazer o rastreio aos contactos dos últimos dias, mas de acordo com a CNN e com o Washington Post, não têm sido muitos os esforços para rastrear. Há pessoas que estiveram em Rose Garden e próximas de Trump que não receberam qualquer indicação para fazerem testes ou ficar de quarentena.

O problema coloca-se também para a frente. Se Trump já tinha testado positivo na quarta-feira de manhã (se a verdade forem as 72 horas ditas pelo médico), qual a razão para ter ido a comícios e eventos de angariação de fundos?

As questões continuam a ser levantadas e a credibilidade das informações provenientes da Casa Branca são questionadas pelos principais meios de comunicação norte-americanos, o Post fala em "confusão" e respostas "incompletas", a CNN em "realidade alternativa" e o New York Times fala em "confusão" e "preocupação". Trump passou a noite no hospital e ainda não é certo quando sairá. Num vídeo publicado ontem à noite diz esperar "voltar em breve", mas as próximas horas serão cruciais.