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Boris Johnson chega a acordo com rebeldes conservadores para aprovar lei que contorna acordo do ‘Brexit’

Primeiro-ministro terá conseguido evitar emenda à lei que desvirtuava o seu propósito: desobrigar o Reino Unido, unilateralmente e em potencial contravenção ao direito internacional, daquilo que ele próprio pactuou com Bruxelas há meses

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Boris Johnson chegou a acordo com os seus companheiros de partido que criticavam a sua proposta de lei de mercado interno, a qual viola o acordo de saída da União Europeia que o próprio primeiro-ministro do Reino Unido assinou há meses. Se até esta quarta-feira pairava o risco de a Câmara dos Comuns aprovar uma emenda que minasse os propósitos do Executivo, agora ela parece ter caminho aberto, escreve o diário “The Telegraph” na sua edição digital.

O primeiro-ministro, que assinou o acordo de saída com os 27 em janeiro deste ano, deseja “clarificá-lo” através de uma lei que o próprio Governo reconhece que “viola o direito internacional”. O diploma, cujo principal objetivo é regular o comércio entre as várias partes do Reino Unido (Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte) após o fim do período de transição do ‘Brexit’, permite a Londres “desaplicar” unilateralmente disposições desse acordo, que tem o peso legal de um tratado internacional.

A proposta de lei passou na generalidade, segunda-feira, na Câmara dos Comuns, mas dois deputados do Partido Conservador (no poder) votaram contra e 30 abstiveram-se. Na próxima terça-feira deveria ser debatida uma proposta de emenda do deputado Bob Neil, que sujeitaria qualquer ação do Governo neste campo à aprovação do Parlamento.

Segundo o diário “The Telegraph”, deputados conservadores dispostos a apoiar essa emenda (a qual contava já com 18 subscritores) afirmam agora que “ainda esta semana” será divulgado um “amplo consenso” com Johnson. Que previsivelmente porá fim à rebelião na bancada parlamentar do Governo. “The Guardian” prevê que Johnson aceite limitar os casos em que se aplicaria a lei do mercado interno para contornar o acordo com a UE.

O aviso americano

O descontentamento não seguia as linhas pró e anti União Europeia (UE) que marcaram a política britânica nos últimos anos. Vários conservadores eurocéticos estavam contra a proposta de lei por esta violar um tratado internacional. Isso acarretaria riscos para a reputação e fiabilidade do país na diplomacia mundial, e logo quando está necessitado de concluir acordos comerciais bilaterais com várias nações com quem anteriormente se relacionava no âmbito da UE.

Um dos acordos mais relevantes será com os Estados Unidos da América. Ora, o Congresso fez saber pela sua presidente, Nancy Pelosi, que não haveria possibilidade de acordo caso o Reino Unido pusesse em risco o Acordo de Sexta-feira Santa. Pelosi é do Partido Democrata, na oposição a Donald Trump, que tem maioria na Câmara dos Representantes. Mesmo que não fosse assim, um acordo comercial exige maioria de dois terços no Congresso, pelo que os democratas serão sempre cruciais para a sua ratificação.

O ministro dos Negócios Estrangeiros britânico foi esta semana a Washington esclarecer os congressistas. Estes exortaram-no a “abandonar todo e qualquer esforço questionável e injusto por contornar o protocolo para a Irlanda do Norte do acordo de saída”.

Segunda demissão por causa da lei polémica

A boa notícia para Johnson – ter aplacado os rebeldes conservadores – surge no dia em que o principal representante jurídico do seu Governo na Escócia apresentou a demissão. Richard Keen, membro da Câmara dos Lordes, que defendeu a proposta de lei e afirmou que esta “não constitui por si uma violação do direito internacional”, não gostou de ver o ministro para a Irlanda do Norte, Brandon Lewis, admitir essa mesmíssima violação, embora qualificando-a de “muito específica e limitada”. A verdade é que o próprio Governo através por exemplo da ministra do Interior, Priti Patel, assumiu dias depois da tirada de Lewis uma posição mais próxima da de Keen.

Este defendera, ao mesmo tempo, que o código de conduta do Governo não permitia aos ministros aprovar algo que quebrasse a legalidade internacional, o que lhe valeu um conflito com a advogada-geral e o solicitador-geral do Governo.

“Apresentei a minha demissão ao primeiro-ministro esta manhã, cedo. Ainda não tive resposta”, anunciou Keen ao jornal escocês “Press and Journal”. É a segunda demissão ligada à polémica proposta de lei, após a de Jonathan Jones, secretário permanente do departamento jurídico do Governo. O ministro da Justiça, Robert Buckland, assumiu que ponderava fazer o mesmo caso se confirmasse que a nova lei violava o direito internacional.

Cinco ex-primeiros-ministros estão contra

A lei do mercado interno permite ao Governo britânico modificar ou ignorar regras sobre a circulação de bens que entrarão em vigor a 1 de janeiro de 2021, caso até lá não surja um acordo comercial entre a UE e o Reino Unido. A ideia foi criticada pelos cinco ex-primeiros-ministros vivos do país, três deles conservadores (John Major, David Cameron e Theresa May juntaram as vozes aos trabalhistas Tony Blair e Gordon Brown).

De Bruxelas veio idêntica reação: o acordo é para cumprir. Ainda esta quarta-feira, durante o discurso do Estado da União Europeia, a presidente da Comissão insistiu nesse ponto. Ursula van der Leyen crê que respeitar o pactuado é a única forma de proteger a paz na Irlanda do Norte, alcançada em 1998 após décadas de conflito armado entre católicos republicanos (partidários da Irlanda unificada) e protestantes unionistas (que querem a Irlanda do Norte como parte do Reino Unido).

As negociações sobre a futura relação bilateral prosseguem mas o prazo é curto. O período de transição do ‘Brexit’ termina a 31 de dezembro, 11 meses depois de o país ter deixado a UE. Caso não haja consenso, passarão a aplicar-se as regras da Organização Mundial do Comércio, mais onerosas para ambas as partes do que as disposições atualmente em vigor.