O Governo do Reino Unido vai autoatribuir-se a capacidade de “desaplicar” partes do acordo de saída da União Europeia (UE), firmado em janeiro deste ano com os 27 estados-membros que a compõem após o ‘Brexit’. Assim prevê a proposta de lei do mercado interno britânico, apresentada esta quarta-feira e alvo de críticas dentro e fora de portas.
A pouco mais de três meses do final do período de transição (em que ainda se aplicam ao Reino Unido as regras da UE) e ainda sem consenso entre Londres e Bruxelas quanto à relação bilateral futura, esta proposta de lei veio azedar o clima das negociações, no dia que o negociador europeu Michel Barnier chegou ao Reino Unido. O francês deve falar em público quinta-feira.
No entanto, Bruxelas já não disfarça a inquietação e o desconforto com o conteúdo da lei apresentada. “Estou muito preocupada com o anúncio do Governo britânico sobre a intenção de violar o acordo de saída”, escreveu a presidente da Comissão Europeia na rede social Twitter, assim que foi publicada a legislação. É já o segundo recado esta semana sobre uma medida que “viola a lei internacional e mina a confiança”.
Von der Leyen deixa claro que o desrespeito por algo que o próprio Boris Johnson acordou no final do ano passado e o seu Governo assinou no início deste coloca em causa a “a base de uma relação futura próspera”. O desrespeito pelo acordo de saída dificulta ainda mais o entendimento sobre a parceria económica que já está difícil de fechar.
O período transitório termina no próximo dia 31 de dezembro e, se até lá não houver consenso sobre a relação futura, o Reino Unido passa a ser um país terceiro indistinto para a UE, comerciando ao abrigo das regras da Organização Mundial do Comércio.
Bruxelas convoca Comité Conjunto
Os peritos europeus vão agora analisar a proposta de lei britânica e o vice-presidente da Comissão para as relações interinstitucionais, Maroš Šefčovič, anunciou esta quarta-feira que vai convocar uma reunião extraordinária do Comité Conjunto, que supervisiona a aplicação do acordo de divórcio entre a União Europeia e o Reino Unido.
Fá-lo “para que os nossos parceiros britânicos expliquem e respondam às nossas enormes preocupações sobre a lei”, disse o comissário aos jornalistas, adiantando que o encontro deverá acontecer “o mais depressa possível”.
Ao abrigo da lei proposta, serão os ministros britânicos a decidir unilateralmente como aplicar as medidas acordadas com Bruxelas no tocante à fronteira da Irlanda do Norte e à circulação de bens entre aquele território do Reino Unido e o resto do país. Inglaterra, Escócia e País de Gales ficam na ilha da Grã-Bretanha, ao passo que a Irlanda do Norte partilha fronteira terrestre com a República da Irlanda, membro da UE.
O território foi um dos escolhos dos acordos alcançados primeiro por May e, depois, por Johnson. Era preciso evitar que a saída do Reino Unido da UE, do mercado único e da união aduaneira implicasse nova fronteira entre as Irlandas. Entre os 27 vigora a livre circulação de pessoas, bens, serviços e capitais. Ao sair com o desejo de controlar as suas fronteiras, o Reino Unido prescinde obrigatoriamente das restantes liberdades.
Fica na Irlanda a única fronteira terrestre entre a UE e o Reino Unido, daí a necessidade de regulamentá-la. Acresce que a Irlanda foi palco, até há 21 anos, de um conflito sangrento entre unionistas protestantes (defensores da manutenção da Irlanda do Norte no Reino Unido) e católicos republicanos (nacionalistas que querem reunificar as Irlandas). A fronteira aberta é um ponto importante do Acordo de Sexta-feira Santa (ou de Belfast), que em 1998 pôs fim a décadas de guerra e ao terrorismo do IRA.
O protocolo que Johnson quer agora repudiar na prática permite manter essa fronteira aberta, mas protegendo o mercado único da UE. Adota uma solução dual em que a Irlanda do Norte fica sujeita a certas regras do mercado único, para evitar controlos fronteiriços, mas permanece no território aduaneiro do Reino Unido. Isto reduz a necessidade de controlo a certas verificações de mercadorias, empurrando a tal fronteira terrestre para o mar entre a Grã-Bretanha e a Irlanda.
Londres admite violar direito internacional
A nova lei permitirá ao Executivo britânico prescindir unilateralmente de tais verificações e dispensar requisitos burocráticos para bens que entram na Irlanda do Norte (e que podem circular livremente dali para a Irlanda e desta para o restante espaço comunitário). O texto estipula ainda que as partes do acordo com a UE relativas a ajudas estatais “não serão interpretadas em conformidade com a jurisprudência do Tribunal Europeu” nem “com qualquer ato legislativo da UE”. Ora, o acordo de saída refere “efeito direto” da legislação europeia.
O parágrafo 42 da proposta de lei intitula-se mesmo “Poder de desaplicar ou modificar as declarações de exportação e outros procedimentos de saída”, conferindo aos ministros britânicos poder para decidir a que inspeções (se é que algumas) sujeitar os bens em circulação, quando se previa que tal fosse decidido em conjunto com a UE. “Um ministro da Coroa pode, através de regulamentação, dispor sobre a aplicação de procedimentos de saída a bens, ou uma descrição dos bens que circulam da Irlanda do Norte para a Grã-Bretanha”, lê-se no articulado. O objetivo é o “acesso desimpedido” de tais bens às diferentes partes do Reino Unido.
A forma encontrada por Boris Johnson para contornar o que ele próprio ratificou enquanto primeiro-ministro “viola o direito internacional”, como reconheceu na Câmara dos Comuns, terça-feira, o ministro para a Irlanda do Norte.
Brandon Lewis defendeu que se trata de clarificar o que o acordo com a UE deixava no ar, pois este “foi escrito presumindo que poderiam ser alcançados acordos subsequentes” com a UE. Repetindo que Londres ainda quer o acordo sobre a relação futura, considera estar em causa “a última oportunidade de dar certeza e confiança ao povo e às empresas da Irlanda do Norte”.
O tom sugere que o Governo de Johnson não crê na possibilidade de um acordo comercial que resolva o assunto e prefere assumir unilateralmente a condução do mesmo, em prejuízo do direito internacional. O primeiro-ministro afirmou há dias que caso não haja conclusão nas negociações com a UE até 15 de outubro não valerá a pena prosseguir com elas.
Theresa May e John Major criticam Boris Johnson
Dois antecessores e companheiros de Johnson no Partido Conservador reprovam o gesto do Governo e desconfiam de tais intenções. Theresa May, que lhe passou o testemunho em junho de 2019, perguntou na Câmara dos Comuns, onde se mantém como deputada: “Como pode o Governo assegurar futuros parceiros comerciais de que podem confiar que o Reino Unido cumprirá as obrigações legais dos acordos que assinar?”
John Major, que chefiou o Executivo entre 1990 e 1997, recordou que “durante gerações, a palavra do Reino Unido – dada solenemente – foi aceite por amigos e inimigos”. Isto porque a assinatura de Londres num tratado era “sacrossanta”. Alerta o ex-primeiro-ministro: “Se perdermos a reputação de honrar as promessas que fazemos, teremos perdido algo sem preço que nunca poderá ser recuperado”.
Também os chefes dos governos regionais galês e escocês criticaram o tratamento distinto que será dado à Irlanda do Norte. A primeira-ministra da Escócia, Nicola Sturgeon, considera os planos de Johnson “um ataque à descentralização”. Na opinião da dirigente do Partido Nacional Escocês, isto reforça a causa da independência, que promete defender nas eleições regionais do próximo ano como “única forma de proteger o parlamento escocês de ser minado e de ver erodir os seus poderes”. Para Sturgeon, o Governo de Johnson é “o mais irresponsável – e, pior, é-o de forma incompetente – e sem princípios” de que tem memória.
O advogado-geral do País de Gales, Jeremy Miles, acusou Johnson de “sacrificar o futuro da união, roubando poderes às administrações descentralizadas”. A proposta de lei é, assegura este trabalhista, “um ataque à democracia”. Teme que as dispensas de verificações “ponham em risco os altos padrões alimentares, de bem-estar animal e ambientais” hoje em vigor.