O autocarro para na beira da estrada que vai de Guadarrama a El Escorial, nas montanhas perto de Madrid, às portas do Vale dos Caídos. Tem matrícula francesa. A guia do grupo de turistas esclarece que vêm de Nantes e estranha que as pesadas barras de ferro estejam fechadas. Aproxima-se do agente da Guardia Civil que vigia a entrada e diz-lhe, em bom espanhol, que têm a visita programada. Continuarão depois até ao mosteiro de El Escorial. “Não pode ser, está fechado.” “Porquê?”, pergunta a guia. “Para remodelação.” Os jornalistas também não estão autorizados a entrar.
A “remodelação” que fechou o complexo monumental há uma semana não é senão a preparação da exumação dos restos mortais do ditador Francisco Franco, que repousam numa tumba ao pé do altar da basílica do Vale dos Caídos. Foi ali que o caudilho foi enterrado há 44 anos, é ali que recebe o reconhecimento dos nostálgicos do seu regime. Este ano, até fim de setembro, 273 mil pessoas tinham visitado o Vale, na maioria simples turistas. É o único monumento na Europa a enaltecer alguém que governou com mão de ferro, durante cerca de 40 anos, um país traumatizado por uma guerra civil que produziu centenas de milhares de mortos, a perseguição implacável dos derrotados e a privação de liberdades.
Aproxima-se a resolução de uma anomalia histórica que a maioria dos cidadãos considera incompatível com a atual democracia espanhola. A exumação ocorrerá na próxima semana, até dia 25, sendo provável que aconteça segunda ou terça-feira. Não haverá honras de Estado, como tinham solicitado os netos do ditador.
O Governo socialista, liderado por Pedro Sánchez, quis evitar um espetáculo ou exaltação da figura do ditador. Não haverá imagens dos trabalhos de levantamento da pesada laje de granito de 1500 quilos nem da verificação do estado do caixão, que será examinado por um funcionário forense. Só assistirão os operários (cujos telemóveis serão apreendidos), membros da família Franco e a ministra da Justiça. Os meios de comunicação estarão fora da Basílica, na grande esplanada que foi, durante muitos anos, local de concentração dos seguidores do ditador.
Só poderão captar imagens da saída do caixão, provavelmente de helicóptero, rumo à sua nova localização: um panteão de 40 metros quadrados e dois andares, propriedade do Estado, na localidade de El Pardo, a 15 quilómetros do centro de Madrid, onde Franco e a família residiram enquanto esteve no poder. Nesse mausoléu repousam os restos mortais da sua esposa, Carmen Polo, que morreu em 1988.
FAMÍLIA FRANCO RESISTIU
Não foi fácil chegar a este ponto. Após a resolução do Parlamento a exigir a exumação e a decisão do Executivo de cumpri-la, a família Franco recorreu à Justiça, primeiro para evitar a exumação, depois exigir que os restos mortais ficassem na cripta da catedral de Almudena, no coração da capital. Todos os recursos foram rejeitados até à última decisão do Supremo Tribunal, a 30 de setembro, a autorizar a trasladação. Foi esta última que superou, por fim, a resistência da comunidade beneditina de 22 monges, responsável pela custódia e culto na Basílica do Vale dos Caídos, que se opunha à exumação.
Com a saída do cadáver de Franco, a controvérsia sobre o futuro do Vale dos Caídos não acabou. A obra ciclópica, inspirada pelo próprio ditador, foi iniciada em 1940, logo após a guerra civil. Nela trabalharam milhares de presos políticos, a troco de reduções de penas. O complexo arquitetónico, apresentado pela ditadura como monumento em memória dos que caíram de ambos os lados na guerra (o que não é o caso de Franco, lembram os defensores da trasladação), foi inaugurado em abril de 1959. Na sua cripta subterrânea estão os restos mortais de 33.800 espanhóis, dos quais 18 mil eram republicanos, perdedores da guerra civil, transferidos para ali, muitas vezes, sem a permissão dos seus familiares.
No complexo — escavado numa montanha granítica e encimado por uma cruz de 150 metros do mesmo mineral, visível desde Madrid — jaz também José Antonio Primo de Rivera, fundador da Falange Espanhola, o partido único de inspiração fascista que deu apoio ideológico ao regime franquista. Foi fuzilado pela República em Alicante, em 1936, pelo que cumpre o critério de ser um caído de guerra. Não há provas de que Franco tenha expressado o desejo de ser enterrado na Basílica. A decisão terá cabido à sua mulher, Carmen Polo e ao então chefe do Governo, Carlos Arias Navarro.
O plano do Executivo de Sánchez, ainda sem pormenores, é transformar o Vale dos Caídos num recinto de memória histórica e reconciliação entre espanhóis. Há quem prefira abandonar o monumento para que seja a natureza a escondê-lo e não falta quem proponha simplesmente dinamitá-lo.