Internacional

A “curiosa necessidade” de Espanha dizer que é democrática: o caso Franco

Há contas ainda por acertar e feridas abertas desde o período da ditadura, afirma o historiador Manuel Loff comentando a polémica em torna da exumação dos restos mortais do ‘generalíssimo’. Em Espanha nunca se apuraram responsabilidades e isso não deu boa imagem ao país, defende

Vale dos Caídos
Pablo Blazquez Dominguez/Getty Images

“Nenhum inimigo da democracia merece um lugar de culto nem de respeito institucional”, disse há menos de uma semana na Assembleia Geral da ONU o chefe do Governo espanhol em funções. Em Nova Iorque, com o microfone a ampliar o seu discurso para que este chegasse a todo o mundo, Pedro Sánchez não se referia a um inimigo qualquer. E se chamou Franco à sala, depois de ser conhecida a decisão do Supremo espanhol dando luz verde à exumação dos restos mortais do ditador – como pretendia o Executivo -, há quem não duvide da clara intenção política da declaração.

“A intenção é a reafirmação de Espanha como Estado democrático”, resume ao Expresso o historiador Manuel Loff, sublinhando ter sido essa, afinal, a motivação para a luta encetada por Sánchez mal chegou ao poder, abrindo com a questão dos restos mortais de Franco uma polémica que lhe custou ser acusado de querer reabrir feridas antigas, vindas do tempo da Guerra Civil.

A decisão de exumar os restos do ‘generalíssimo’, que governou o país entre 1936 e 1975, assinando quatro décadas de autoritarismo, dividiu a sociedade espanhola. Sepultado num túmulo colocado no Vale dos Caídos, mausoléu grandioso que o próprio ditador mandou construir, aos familiares das vítimas da ditadura e da guerra civil têm incomodado ao longo dos anos as regulares romarias de homenagem a Franco cumpridas no local.

Muitas vozes foram inclusivamente lembrando que o monumento, com a sua imensa cruz de 150 metros de altura, colocada no cume do rochedo onde foi escavada uma basílica, foi erigido à custa do trabalho escravo de 20 mil prisioneiros de guerra - muitos ficaram ali enterrados e muitos outros cadáveres terão sido para ali levados.

Mas outras vozes se pronunciaram defendendo que o passado é coisa para deixar em paz, a bem de um futuro mais apaziguado e sereno. No plano político, o Partido Popular espanhol censurou o Governo e garantiu ter como prioridade “os vivos”, enquanto o Vox – a partir da extrema-direita – considerou estar em causa apenas “uma manobra política” com vista a conquistar votos eleitorais.

Oposição mais séria fizeram os descendentes de Franco, com a família a recorrer à Justiça: se o corpo tinha de sair, então que seguisse para a cripta da catedral da Almudena, opção que finalmente o Supremo negou.

Feridas abertas e “passos simbólicos”

“A exumação faz parte de um segundo momento, muito tardio, em que o estado espanhol tenta acertar contas com o passado”, diz Manuel Loff. O primeiro esforço aconteceu em 2007, com a Lei da Memória Histórica, na prática “um esforço muito tímido”, o que tornou Espanha “uma exceção no conjunto das outras democracias”, um país onde a repressão e os crimes não deram origem a nenhum processo, onde nenhuma responsabilidade foi apurada, conclui o investigador do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa.

Muitas feridas ficaram abertas e, na opinião de Manuel Loff, Espanha “sabe que ficou com um problema de imagem à escala internacional”. É o que tenta agora remediar, afirma, ainda que continuem a ser dados passos “apenas simbólicos”.

Já depois dos filhos, são os netos das vítimas da repressão de Franco que continuam a exigir algum tipo de resposta, continua Manuel Loff, até por questões entretanto vindas à tona e que têm ligação com o período de Franco, “como o caso dos raptos dos bebés”.

No imediato, o Executivo quer apressar a exumação, para a concluir antes do início da campanha eleitoral que antecede a ida às urnas, no dia 10 de novembro. Soube-se esta segunda-feira que o Supremo permite a imediata trasladação, rejeitando também a contestação dos familiares de Franco quanto à ida dos restos mortais para o cemitério de El Pardo, onde está sepultada Carmen Polo, a mulher do ditador. Podem os netos interpor recurso no Tribunal Constitucional, escreve o “El País”, mas é improvável que isso suspenda a operação em marcha quanto ao Vale dos Caídos.

Espanha terá andado devagar, mas parece agora ter pressa. “Finalmente saímos daqueles anos sombrios e os espanhóis foram capazes de construir um país próspero, descentralizado e considerado internacionalmente como uma das democracias mais sólidas do mundo”, insistiu o primeiro-ministro de Espanha nas Nações Unidas.

“Curiosa esta necessidade de o dizer”, conclui Manuel Loff.