Internacional

A emoção de estar em Bruxelas no dia em que o Reino Unido não saiu da União Europeia

O dia oficial para o Reino Unido bater com a porta da União Europeia, entretanto adiado, coincidiu com o segundo dia do festival literário Passa Porta, em Bruxelas. O Expresso falou com a consagrada escritora escocesa Ali Smith, que afirmou ser “pela unidade e não pela divisão”, e com autores emergentes de várias latitudes. O português José Gardeazabal disse não estar “nada pessimista” com o Brexit, enquanto o romeno Catalin Pavel considerou que seria “estúpido” os seus compatriotas pensarem na ideia de sair

Ali Smith
Leonardo Cendamo/Getty Images

“É emocionante estar aqui no dia em que nós não saímos”, comenta ao Expresso, com um sorriso, a escritora escocesa Ali Smith, referindo-se à data oficial do Brexit. Como já se previa nos dias anteriores, o Reino Unido não saiu da União Europeia (UE) a 29 de março e a autora, várias vezes indicada para o Booker Prize, congratula-se com o facto de estar em Bruxelas, o coração das decisões europeias. “Sou pela unidade e não pela divisão. Espero que a unidade venha a prevalecer. E mesmo que a divisão surja, não tenho dúvidas de que voltaremos à unidade porque é isso que as pessoas acabam por escolher”, acrescenta numa declaração rápida e exclusiva, após a apresentação em estreia mundial do seu novo livro, “Spring” (“Primavera”).

A casa de espetáculos La Bellone, situada na rue de Flandre da capital belga, estava lotada para ouvir Ali Smith falar sobre o terceiro livro da sua tetralogia das estações do ano. Tudo começou com “Outono” (2016, edição portuguesa: Elsinore, 2017), seguiu-se “Inverno” (2017, edição portuguesa: Elsinore, 2018) e estará para breve a edição em Portugal deste “Primavera”. Sobre o “Verão”, a autora não adiantou grande coisa mas fez algumas revelações sobre a sua cor favorita (amarelo), a sua bebida de eleição (whisky), a roupa que prefere vestir (“o que quer que esteja no chão e onde seja fácil enfiar-me”) ou a maneira como gostaria de morrer (“comida por um tigre” porque “nada seria desperdiçado e eu passaria a existir na mais bonita forma possível”).

A apresentação de uma hora, no final da qual Ali Smith até cantou uma pequena parte da sua canção favorita – uma antiga música escocesa intitulada “Annie Laurie” –, fazia parte da programação do festival literário Passa Porta, que decorreu entre quinta-feira, 28 de março, e domingo, 31. Na sua sétima edição, o festival realiza-se a cada dois anos e, desta vez, reuniu mais de uma centena de autores e artistas num total de 21 nacionalidades. Passa Porta também é nome de livraria e a sua diretora, Ilke Froyen, explicou o nome ao Expresso: “Em francês, significa ‘passez la porte’, como em português. Em holandês, não significa nada. Mas é pronunciável por pessoas que falem holandês, francês e outras línguas. E é também uma alusão ao passaporte e à ideia de que não é necessário um passaporte para ler. Todos os leitores são bem-vindos.”

“A ideia de Europa não vai sofrer” com o Brexit

Integrado no festival esteve também o programa itinerante Connecting Emerging Literary Artists (CELA), que junta cerca de duas dezenas de autores e outros tantos tradutores, incluindo os portugueses José Gardeazabal e Valério Romão, que estiveram presentes nesta edição do Passa Porta. Em fim de semana de Brexit adiado, o assunto dominou as conversas de café, algumas sessões do evento e os jantares da comitiva. “Não sou nada pessimista em relação ao Brexit. As consequências piores já estão a acontecer, sobretudo para o Reino Unido e a sua autoimagem. Mas acho que, a médio e longo prazo, a ideia de Europa não vai sofrer – pelo contrário. Houve um aumento da consciência do ser europeu e isto é um diálogo. Agora estamos no meio de um grande ruído e parece-nos tudo mau”, relativiza Gardeazabal ao Expresso.

José Gardeazabal
Gaby Jongenelen/CELA EU

O autor de “Meio Homem Metade Baleia” (Companhia das Letras, 2018), o seu primeiro romance, arrisca dizer o que virá depois. “Penso que haverá uma reflexão e concluiremos que esta parte de nós que não podemos tirar é fundamentalmente – e será sempre – europeia. Também é um processo de crescimento. O crescimento, às vezes, significa que há decisões que não podem ser ótimas. E há também, neste momento, um choque de realidade”, remata. Esse choque não podia ser mais doloroso para a também escritora emergente Livia Franchini, nascida na região italiana da Toscana e a viver em Londres. “Eu pensei: ‘se o Brexit vai mesmo acontecer, ao menos que aconteça enquanto estou em Bruxelas para eu me sentir um bocadinho melhor em relação a isso’. É bastante distópico estar aqui no dia do Brexit. Gosto do Jeremy Corbyn [líder do Partido Trabalhista] e acredito que ele pode tomar boas medidas mas o Labour está a falhar na área dos direitos dos cidadãos da UE no Reino Unido”, relata ao Expresso. Franchini reserva, no entanto, as suas críticas mais duras para a chefe do Governo britânico. “Theresa May estava a fazer coisas horríveis nessa área mesmo antes de ser primeira-ministra. E está tudo a piorar. Não há qualquer debate sobre as pessoas que se estabeleceram com as suas famílias no Reino Unido e agora são atiradas para um cenário de completa insegurança”, lamenta.

Livia Franchini
Gaby Jongenelen/CELA EU

Na Roménia “é estúpido pensar em sair da UE”

A Roménia assumiu a 1 de janeiro – e pela primeira vez – a presidência rotativa semestral da UE. Coincidentemente, o país esteve bastante representado entre os artistas literários CELA nesta edição do Passa Porta. “A Roménia sempre considerou estar em comunhão com outras culturas europeias. Nesse sentido, é um bocado tabu ou até estúpido pensar em sair da UE, seja de que forma for”, afirma, sem rodeios, o escritor romeno Catalin Pavel. “Culturalmente, eu e todas as pessoas que conheço sempre estivemos impregnados em cultura francesa, inglesa e alemã e nunca nos concentramos nos nossos umbigos. Os políticos tentam instrumentalizar medos e ansiedades e talvez digam que precisamos de sair mas isso não vai acontecer. Não queremos isso”, sublinha ao Expresso o escritor, que também é arqueólogo.

Catalin Pavel
Marianne Hommersom/CELA EU

O holandês Jan Willem Bos, um reputado tradutor de romeno para a sua língua materna, comenta o Brexit a partir de dois pontos privilegiados de observação: a sua Holanda natal e a Roménia, que visita todos os anos (por vezes, três a quatro vezes por ano). “Para os romenos, a adesão à NATO [em 2004] e à UE [em 2007] foi o regresso a um grupo de países a que eles sentem que pertencem emocionalmente. A Roménia considera-se – e com razão – um país ocidental. A adesão foi um retorno à normalidade e eles continuam ser muito euro-entusiastas. A percentagem de romenos que deseja pertencer às estruturas ocidentais é massiva. Além disso, o Reino Unido está muito distante da Roménia e não há muita simpatia pelo Brexit”, resume.

Eleitores perdidos na tradução dos valores europeus

“Já a Holanda está muito preocupada porque o Reino Unido é não apenas extremamente importante como parceiro comercial, mas também do ponto de vista estratégico. No seio da UE, o Reino Unido e a Holanda estão sempre do mesmo lado em tudo. Somos uma nação muito pequena, precisamos de amigos maiores e o Reino Unido era um dos nossos amigos. Paradoxalmente, há algumas vantagens [do Brexit] para a Holanda: empresas e bancos que saem do Reino Unido escolhem frequentemente Amesterdão para se mudarem, o que significa mais empregos e mais oportunidades. Mas, em geral, o sentimento é de preocupação. Embora as tendências eurocéticas também sejam fortes na Holanda, não antevejo que o Parlamento alguma vez vá votar uma saída da UE e ainda bem. Como disse, somos um país muito pequeno e isso seria evidentemente estúpido”, contrapõe Willem Bos ao Expresso.

Jan Willem Bos
Gaby Jongenelen/CELA EU

E enquanto tradutor, não sente que muitas vezes o discurso dos dirigentes europeus (e nacionais) se perde na tradução quando estes se dirigem aos eleitores? “Sem dúvida! E o Brexit é um exemplo muito claro disso mesmo. Nunca nenhum dirigente político britânico de topo explicou claramente o que são os valores europeus. E estamos a ver quais podem ser as consequências”, conclui.