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O que pode Trump fazer com os poderes de um estado de emergência? Quase tudo, mas tem o Supremo no caminho

Declarado o estado de emergência, mais de 100 ‘leis provisórias’ ficam ao dispor do Presidente. Incluem poderes como o arresto de propriedade privada, a organização dos meios de produção sem consulta do respetivo dono, o envio de tropas para o estrangeiro ou para reforçar a segurança dentro do próprio país ou o controlo de todas as vias de transporte e de comunicação. Sim, da internet também

Drew Angerer/Getty

O que é que cabe dentro dos poderes do Presidente dos Estados Unidos depois de declarado um “estado de emergência”? Quase tudo, na verdade. E a maioria das prerrogativas adquiridas não são fáceis de adivinhar. O poder de mandar botas militares patrulhar as ruas antes mantidas pacíficas por meros polícias é quase a primeira medida que dispara no nosso imaginário comum - não faltam películas oscarizadas onde um homem consternado atrás de uma secretária, preferencialmente a Resolute, ordena a um subalterno “send them in, Paul”, ou qualquer que seja o nome do mensageiro.

Mas será que alguém se lembrou esta quinta-feira, quando Donald Trump disse que ia declarar o tal “estado de emergência nacional”, de que isso lhe dá o poder para permitir o teste de armas biológicas em humanos não-cooperantes?

Se vai acontecer? É pouco provável. A própria declaração poderá nem chegar a surtir os efeitos que Trump tanto ambiciona - conseguir os mais de 5 mil milhões de dólares para a construção do muro na fronteira com o México - porque, segundo alguns advogados que têm sido consultados pela imprensa norte-americana para avaliarem a abrangência tangível desta intenção de Trump, ele não pode utilizar fundos não aprovados pelo Congresso para propósitos não aprovados pelo Congresso. Para que isso aconteça a sua administração teria que conseguir provar, no Supremo Tribunal, que de facto existe uma enorme ameaça à segurança nacional e que a sua origem está nos poucos milhares de sul-americanos feridos, cansados e esfomeados que lhe vão chegando à fronteira.

Declarado o estado de emergência, mais de 100 ‘leis provisórias’ ficam ao dispor do presidente. Passam a possibilidades poderes como o arresto de propriedade privada, a organização dos meios de produção sem consulta do respetivo dono, o envio de tropas para o estrangeiro ou para reforçar a segurança dentro do próprio país, o controlo de todas as vias de transporte e de comunicação - sim, da internet também, não só dos telegramas.

Estas leis variam muito no seu âmbito e conteúdo. E se é verdade que, em alturas de grande tumulto, elas podem oferecer a flexibilidade necessária para que o governo possa lidar, por exemplo, com uma epidemia ou com confrontos graves durante uma manifestação, enviando os militares para restabelecer a ordem ou ajudar a transportar feridos, também se dá o caso de serem muitas vezes utilizadas de forma permissiva. Depois do 11 de Setembro, o presidente George W. Bush chamou centenas de milhares de militares na reserva para uma guerra, a do Iraque, que nada tinha a ver com os ataques às Torres Gêmeas, em 2001.

Tribunais devem tentar impedir Trump

“Haveria uma chuva de processos judiciais quase imediatamente”, disse à VICE Elizabeth Goitein, uma das diretoras do Centro Brennan para a Justiça, a Liberdade e a Segurança Nacional e que assinou na “The Atlantic” um exaustivo artigo sobre o assunto. “Se ele declarar uma emergência nacional, a minha esperança é que os tribunais, o Congresso, o parem rapidamente. Ainda que seja apenas a declaração e que nenhum dos poderes que ela confere sejam utilizados, isso já seria um assalto ao nosso sistema constitucional e democrático”, disse Goitein antes de conhecerem as intenções de Trump.

Até alguns republicanos têm mantido as suas reservas quanto a esta medida. Mac Thornberry, congressista pelo Estado do Texas, anunciou esta terça-feira que estava contra a construção do muro com fundos da Defesa. “Resumindo, sou contra a utilização de fundos da Defesa para propósitos que não essa mesma Defesa”, disse aos jornalistas. Até os seus comentadores preferidos, quase todos 'habitués' da Fox News, têm dúvidas sobre esta abordagem. Andrew Napolitano, analista em matérias de lei e Constituição, disse que o seu conselho para o Presidente era para que não utilizasse dinheiro que o Congresso não libertou.

Esta não é a primeira vez que a sombra de um estado de emergência paira sobre a democracia norte-americana. De facto, neste momento, estão 31 em vigor e versam todo o tipo de “emergências”: desde o caso da ingerência russa nas eleições e as sanções associadas, ao bloqueio de fundos de empresas e indivíduos iranianos e venezuelanos, entre outros.

Barack Obama instituiu o estado de emergência 13 vezes, uma delas para lidar com o H1N1. Franklin Roosevelt utilizou esses mesmos poderes para aprisionar mais de 100 mil americano-japoneses durante a Segunda Guerra Mundial e Harry Truman tentou, mas falhou, a nacionalização das fábricas de aço durante a Guerra da Coreia porque os trabalhadores decidiram entrar em greve e não se estavam a produzir armas que ele considerava necessárias.

Ora, se o Supremo não considerou o fabrico de armas uma emergência durante uma guerra, a esperança dos críticos de Trump é que também não considere uma emergência a situação na fronteira com o México. É importante lembrar que os agentes de segurança na fronteira prendem hoje muito menos pessoas a tentar entrar ilegalmente nos Estados Unidos do que em 2000. Dos anos 1980 até a meio da primeira década do novo milénio, o governo registou a detenção de entre um milhão e 1,6 milhões de pessoas. Em comparação, em 2018, nenhum mês registou mais de 40 mil tentativas de entrada.

Não fechem a internet!

A utilização da lei de 1942 que rege as comunicações em tempo de emergência nacional em 2019 pode parecer um esticar de corda demasiado ambicioso, mas não foi assim há tanto tempo que alguns legisladores, num debate sobre segurança informática, se revelaram de acordo com a generalidade desse texto. A secção 706 dessa lei, escreve no mesmo texto da “The Atlantic” Elizabeth Goitein, diz que o presidente tem o poder de cortar as comunicações internas. É impossível entender, no mundo interligado atual, a real abrangência de uma medida destas. Nenhum médico poderia consultar a ficha de um paciente, haveria pessoas a morrer por alergia à penicilina. Nenhuma transferência bancária seria efetiva, a menos que nos dirigissemos ao balcão do banco. Seria impossível viajar de avião, tal como a verificação, em tempo útil, da identidade das pessoas que chegassem às fronteiras do país.

A tentação é grande e a total liberdade de navegação na internet não é um dado adquirido em meia centena de países do mundo. Há pouco tempo, Trump disse no Twitter que as companhias de fornecimento de internet estão “ENVIESADAS” contra ele e que só oferecem artigos, nos seus motores de busca, danosos para a sua reputação. E deixou o aviso: “Acho que a Google, o Twitter e o Facebook estão a caminhar sobre território muito, muito perigoso e têm que ter cuidado”. Seria possível, ainda que complicado, dado que a maioria dos fornecedores são privados, o que iria soterrar toda a Casa Branca em processos caso sonhassem que Trump planeava, por exemplo, “reprogramar” a internet para só apresentar, nos primeiros resultados de um motor de busca, notícias laudatórias da sua administração. Impedir acesso a certas páginas seria o mais rápido e o mais fácil de fazer - mas um escandâlo, ainda assim.

A 1ª. Emenda é quase um trecho bíblico para os juízes do país e por isso é pouco provável que se chegue a estes extremos. Mas, em declarações à VICE, Geoffrey R. Stone, constitucionalista da Universidade de Chicago, disse que “o progresso feito até aqui é frágil”. Não seria preciso assim tanto para “desorganizar a compressão daquilo que é a 1.ª Emenda”, disse ainda. De facto, não. É só preciso um corpo de juízes no Supremo cuja lealdade ao presidente seja mais forte do que o compromisso com as liberdades individuais.

Sanções sobre os próprios americanos

Poder declarar guerra é uma coisa muito mais cinematográfica mas impedir alguém de trabalhar, congelar os seus bens, fechar um negócio, tem um impacto na vida das pessoas. A lei que regula os Poderes Económicos durante a Emergência Internacional, de 1977, foi criada para “lidar com uma ameaça súbita e fora do comum para a segurança nacional, para a política externa ou para a economia que tenha origem fora dos Estados Unidos, pelo menos em parte”. Uma vez que alguém é identificado como uma destas ameaças nenhum americano pode oferecer-lhe trabalho, arrendar-lhe um apartamento ou oferecer-lhe um pedaço de pão com queijo.

Com a quantidade de vezes que Trump já disse que a situação na fronteira com o México é “uma ameaça à segurança nacional”, uma “crise sem precedentes”, podemos pensar num cenário em que os americanos que tentem ajudar os imigrantes em situação ilegal sejam de alguma forma penalizados com sanções que podem ir das multas ao congelamento de bens. Já aconteceu a Garad Jama, um somali-americano que tinha uma empresa de transferência de dinheiro para o estrangeiro e que foi acusado de ligações terroristas. O governo teve que dar autorização a um supermercado para o empregar na caixa, para ele poder sustentar-se e pagar a um advogado. E também acontece, neste preciso momento, na Hungria.

Mas para Trump não será tudo tão “fácil” como foi durante os tempos de guerra. A lei que determina quando, como e porquê declarar uma emergência nacional foi modificada em 1976 e agora o presidente, quando declara uma emergência nacional, tem que especificar que poderes, daqueles que, de repente, lhe ficam acessíveis, como os pretende utilizar e porquê.