Projetos Expresso

“Falta-nos alguém que diga onde queremos estar”

Engenheiros. Protagonistas de diferentes áreas deixam críticas ao rumo das políticas públicas e apelam a medidas que aproveitem o talento desenvolvido dentro de portas para alicerçar o desenvolvimento. É o futuro de Portugal em causa
Ladeada pelo vice-presidente da Câmara do Porto, Filipe Araújo, e pelo bastonário da Ordem dos Engenheiros, Fernando de Almeida Santos, a ministra da Habitação, Marina Gonçalves, marcou presença no primeiro dia do Congresso
Rui Farinha/NFactos

Habitação, urbanismo, descarbonização, mobilidade, educação, digitalização ou reindus­trialização. São alguns dos temas que marcaram as intervenções ao longo dos dois dias do XXIII Congresso Nacional da Ordem dos Engenheiros e que permitiram traçar um retrato abrangente das principais questões estruturais que Portugal enfrenta. Porque o país, que cresceu 2,3% em 2023, segundo o Instituto Nacional de Estatística — por oposição aos 0,5% do PIB da média europeia no mesmo período, de acordo com o Eurostat —, é também aquele em que cerca de 850 mil pes­soas (30% dos nascidos com idades entre os 15 e os 39 anos) deixaram o país e vivem atualmente no exterior, revela o Observatório da Emigração.

“A geração dos nossos filhos não nos vai perdoar, e não tem essa obrigação, se não formos um país com tecnologia de ponta e melhores condições de vida”, garantiu o presidente da Ordem dos Engenheiros — Re­gião Norte, Bento Aires, até porque a “Revolução 5.0 carece de soluções imedia­tas” e “Portugal tem que estar no pelotão da frente”, acrescenta Fernando de Almeida Santos, o bastonário da Ordem dos Engenheiros. Para o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que gravou uma mensagem para o arranque da reu­nião que junta os profissionais do sector de três em três anos, “a engenharia ajuda a transformar sonho em realidade”. Conheça as principais conclusões do Congresso.

1º dia

Envergonhar

Voltemos então à palavra pela qual começamos este texto: habitação. O tema foi um dos pontos de maior destaque do primeiro dia, com muitos dedos apontados à política seguida nos últimos anos e às medidas tomadas para tentar fazer face a uma crise que afeta uma fatia muito significativa da população. Comprar casa em Portugal ficou 4,8% mais caro, com os preços das casas para arrendar a registarem um aumento de 26,3% em 2023, segundo dados do portal Idealista. Enfrentamos a “maior crise habitacional dos últimos 50 anos”, menciona o CEO da Agenda Urbana, Álvaro Santos, ao mesmo tempo que “nunca tivemos tanto dinheiro para investir”. É uma “situação paradoxal”, reconhece, e que encerra uma crítica às medidas do programa Mais Habitação. Fernando Santo, presidente do Conselho da Construção e do Imobiliário da CIP, vai mais longe: “O que fizemos nos últimos 25 anos devia-nos envergonhar.”

Comprar casa em Portugal ficou 4,8% mais caro, com os preços para arrendar a subirem 26,3% em 2023

Pedro Baganha, vereador da Câmara do Porto, revela que “construímos cinco vezes menos fogos do que no início do século” e que parte da solução passa por inverter esses números e “reforçar a oferta pública”, enquanto Hugo Santos Ferreira, presidente da Associação Portuguesa de Promotores e Investidores Imobiliários, fala da necessidade de “reforçar a confiança dos investidores”. Pela sua parte, a ministra da Habitação, Marina Gonçalves, reconhece que “não teremos sempre a mesma visão” e admite que “há muito caminho a fazer no futuro”, com um “diálogo que deve envolver todas as entidades”.

No campo da mobilidade, Carlos Tavares, CEO da Stellantis, deixou bem clara a sua discordância quanto ao rumo que a política europeia está a tomar, até porque “não se pode pedir à indústria [automóvel] que se transforme e continue a criticar. A demagogia aí é total”, acredita, com a certeza de que, “se os governantes obrigassem as sociedades a fazer 10% do que nos obrigam, havia uma revolta”.

É preciso mudar os ciclos legislativos para que a engenharia aplicada ao urbanismo responda às necessidades da descarbonização e da população, sustenta Olga Pereira, vereadora da Câmara de Braga, para contrariar a “perceção” das pessoas “que vivem no caos”. E não resiste a uma pequena provocação: “Gostava que Braga tivesse só o valor da derrapagem das obras do metro de Lisboa.”

A reboque de fundos europeus há hoje grandes investimentos em curso, que prometem mudar a face de algumas cidades no campo dos transportes, mas a vereadora da Câmara de Coimbra, Vera Bastos, refere que a “diferença de financiamento das grandes áreas metropolitanas para o resto do país tem que ser esbatida”.

“Os ciclos autárquicos têm que mudar”, reforça Paula Teles, até porque “nós não estamos a conseguir resolver os problemas”. A especialista em mobilidade urbana lembra como “há 20 anos se falava em projetar cidades para os automóveis e hoje projetam-se cidades para as pessoas”. “Um engenheiro não pode continuar a negligenciar a escala humana”, aponta.

2º dia

Aplicar em pleno

De acordo com uma análise da Pordata a partir de dados do Eurostat, a produtividade no trabalho em Portugal está 35% abaixo da média europeia, o que coloca o país como o quinto pior do ranking comunitário. “Esperava-se que Portugal já estivesse ao nível da média europeia e estagnou. Sem aumento da produtividade não há crescimento económico”, acredita Francisco Assis (que recentemente renunciou à presidência do Conselho Económico e Social), que pede uma “revolução na organização das empresas”, pois “já não há razão para estarmos tão afastados”. Na sua opinião, “a estrutura económica não foi capaz de acompanhar” o “número de licenciados e doutorados altamente qualificados”, e é evidente a frustração da geração que sai das universidades por não “aplicar em pleno os conhecimentos” que adquiriu. É uma das principais razões que tem levado ao aumento da emigração, o que não seria negativo se criássemos condições para o regresso de quem sai e “aproveitar” novas “ideias e linguagem”, sugere José Vieira, presidente (entre 2021 e 2023) da World Federation of Engineering Organizations.

A produtividade no trabalho em Portugal é a quinta pior da UE e está 35% abaixo da média europeia

“Estima-se que 80% dos dados industriais não estejam a ser utilizados”, afirma Maria da Graça Carvalho, com a convicção de que “são essenciais” para a inteligência artificial. A eurodeputada destaca que “Portugal tem, na Universidade do Minho, um supercomputador, parte da nova rede europeia de Computação de Alto Desempenho, que pode e deve ser colocado ao serviço da academia, mas também das empresas”. Já nas “renováveis inovadoras temos um registo melhor, por exemplo, na energia das ondas e na energia geotérmica, mas devemos intensificar esse esforço”.

A digitalização pode revelar-se fulcral face à ameaça da desindustrialização, o que leva Isabel Furtado, CEO da TMG Automotive, a acusar Portugal de não ter “uma estratégia” e a caucionar que “falta-nos mesmo alguém que diga onde queremos estar”. E “não vale a pena fazer mais estudos ou relatórios”. Para Miguel Pinto, vice-presidente da AEP, o tecido empresarial tem que definir “que tipo de indústria quer para o futuro”. Porque “não estamos a fazer nada para reindustrializar e nada para ganhar autonomia estratégica”, critica o CEO da The Navigator Company, António Redondo, que reitera que “a prosperidade na Europa andou sempre de mão dada com o crescimento da indústria”. O “défice energético na Europa é brutal” e “estamos cada vez mais distantes da fronteira tecnológica”, atira. O cenário é complexo, mas, se tomarmos as opções certas nestes domínios, “estamos perante uma oportunidade única para o país, provavelmente não repetível”.