Todos os anos, as oito organizações não-governamentais (ONG) de base comunitária que se dedicam à prevenção e ao rastreio da infeção por VIH tremem na altura de obter novo apoio financeiro para manter a atividade. Maria Eugénia Saraiva, presidente da Liga Portuguesa Contra a Sida, lamenta que o atraso na elaboração e aprovação do Orçamento de Estado (OE) para 2022 esteja a adiar o lançamento dos concursos públicos que permitem a estas associações dar “respostas sociais de continuidade”. “Esta é uma grande preocupação porque leva a que estes projetos – que não são projetos, são respostas sociais de continuidade – possam ter um interregno”, aponta, complementando que existem “técnicos de saúde que correm o risco de ficar sem qualquer remuneração”.
A responsável da liga critica a opção do Estado em lançar concursos públicos para o apoio às associações, em vez de “contratualizar estes serviços de resposta social de continuidade” de forma mais alargada no tempo. Repetir anualmente candidaturas a um apoio que pode, ou não, ser atribuído, não faz sentido, já que este trabalho é considerado pelas organizações como uma extensão dos serviços de saúde prestados pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS). São “centros de atendimento e apoio psicossocial, serviços de apoio domiciliário, residências” e unidades móveis de rastreio e prevenção que têm sido aliados do Ministério da Saúde na diminuição da incidência do VIH em Portugal.
“Até hoje nenhum destes utentes deixou de ter o apoio destas associações, apesar das dificuldades no financiamento”
Maria Eugénia Saraiva, presidente da Liga Portuguesa Contra a Sida
À saída da segunda reunião do conselho consultivo de especialistas do Horizonte 2030, um projeto do Expresso para debater os desafios do VIH/SIDA e para a definição de soluções, Maria Eugénia Saraiva sublinhou o “cansaço” sentido pelas ONG. “A resiliência de que todos falam das ONG de base comunitária também tem um limite e não pode ser um dado adquirido”, avisa. “Não basta dizer que são muito importantes”, acrescenta. À porta fechada reuniram-se profissionais de saúde, representantes das associações e ainda Margarida Tavares, a infeciologista que assumiu, em 2021, a liderança do programa prioritário para o VIH e infeções sexualmente transmissíveis, para discutir as principais dificuldades na prevenção da epidemia.
VIH na agenda pública e política
Entre críticas à falta de articulação entre o Ministério da Saúde e outras instituições públicas – como a Segurança Social ou o Ministério da Educação -, os presentes concordaram na importância de trazer a infeção por VIH de novo para a agenda. Consideram ser essencial apostar na comunicação sobre o vírus, a prevenção da infeção e, sobretudo, na divulgação de ferramentas como a profilaxia pré-exposição (PrEP). Trata-se de medicação preventiva, em forma de comprimidos, que deve ser tomada por pessoas particularmente expostas ao risco de infeção, nomeadamente trabalhadores do sexo e outros grupos vulneráveis, e que permite evitar contrair o vírus. Uma das dificuldades existentes está na promoção da PrEP junto das populações-chave por parte dos profissionais de saúde, que temem que os utentes substituam a utilização de preservativo por este método complementar. As associações e médicos presentes consideram este receio injustificado, e defendem mais formação para a generalidade dos profissionais de saúde, incluindo médicos de medicina geral e enfermeiros.
“Os médicos são pessoas e, como todos nós, têm as suas crenças, os seus tabus e as suas dificuldades. Nesse contexto, é importante informarmo-nos e formarmo-nos”, diz Maria Eugénia Saraiva. Para a psicóloga clínica e sexóloga, é igualmente necessário reforçar a “humanização” dos utentes desde cedo nas faculdades de medicina.
Normalizar a testagem
Ainda durante o encontro do conselho consultivo de especialistas foi defendida a ideia de alargar o acesso de toda a população, e não apenas dos considerados grupos-chave, à testagem ao VIH. “Com a covid-19, vimos as pessoas escarafuncharem o nariz várias vezes por mês, mas não vemos as pessoas incluírem nas suas análises sanguíneas a testagem ao VIH”, lamenta o perito em saúde pública, Gonçalo Figueiredo Augusto. Ao Expresso, diz ser necessário “disponibilizar a testagem” em conjunto “com informação sobre prevenção e aconselhamento” para que seja possível aumentar os diagnósticos precoces de infeção.
Atualmente, qualquer pessoa pode pedir ao seu médico de família a testagem ao vírus, ou pode fazê-lo nos centros criados pelas organizações de base comunitária. Nas farmácias, sublinham, existem testes, mas ainda “são caros”, e impedem o acesso de parte da população. “Uma ideia de comunicação é dizer “saiba o status [de infeção], faça o teste”, reforça o professor auxiliar na Escola Nacional de Saúde Pública.
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- É o número de casos de infeção por VIH reportados a 31 de dezembro de 2019, de acordo com dados publicados pela Direção Geral da Saúde, menos 331 do que em 2018. Os dados mais recentes ainda não estão disponíveis por falha do sistema informático de monitorização
As reuniões do conselho consultivo de especialistas do Horizonte 2030, um projeto do Expresso com apoio da ViiV Healthcare, acontecem trimestralmente para debater os desafios do VIH/SIDA em Portugal e, sobretudo, para definir caminhos que permitam diminuir a incidência da infeção. Estes encontros decorrem à porta fechada, permitindo aos peritos uma discussão livre e isenta de pressões.