No passado dia 11 de Setembro, a procuradora-geral da República Lucília Gago esteve na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, no Parlamento. No seu discurso, como forma de justificar a falta de recursos do Ministério Público, apresentou vários dados, realçando que o facto de cerca de dois terços dos funcionários serem mulheres constitui um “constrangimento extra”, já que possivelmente engravidam, amamentam, cuidam dos filhos e tiram licença parental. Antes de mais, deixo abaixo o discurso da PGR:
“Há uma diminuição de 12 magistrados, isto leva à insuficiência de magistrados. A greve de funcionários judiciais tem malefícios que só daqui a algum tempo é que serão medidos. Há uma falta de 400 funcionários judiciais. Se as condições dos funcionários judiciais continuarem é certo que podemos abrir concursos que eles acabarão por não permanecer nesse desempenho. O peso do sexo feminino é superior a dois terços, ou perto de 90%, se considerada a faixa etária até aos 30 anos. Objetivamente, esta circunstância constitui um fator de agravamento de constrangimentos em razão de situações de gravidez, de gravidez de risco, de baixa para assistência a filhos menores, gozo de licença parental, ausência para efeitos de amamentação, toda uma panóplia de situações que ocorrem comummente”. (fonte: Jornal Observador)
O discurso acusatório misógino e desinformado de Lucília Gago é extremamente grave em qualquer situação, quanto mais vindo da procuradora-geral da República que, ainda por cima, é mulher. Usar a idade fértil das mulheres trabalhadoras como desculpa para problemas de gestão de recursos do Ministério Público é, no mínimo, deplorável.
Além disso, é extremamente irónico e contraditório. Por um lado, no campo político, a falta de natalidade é constantemente notícia, assombrando-nos com um futuro próximo de pessoas sem reforma. A nível social, ainda é visto como egoísta uma mulher não querer ter filhos, para além de que persiste a crença de que o epítome máximo de felicidade feminina é ser mãe. Por outro lado, as mulheres ainda são ainda, de forma recorrente, vistas como funcionárias menos ideais porque são, ou poderão ser, mães. Afinal, querem ou não querem que as mulheres tenham filhos?
Infelizmente, a discriminação laboral em relação à maternidade começa muito antes de se conseguir o emprego, começa na escolha das pessoas para entrevistas e na forma como estas são conduzidas. A misoginia é perpetuada em discursos que alimentam a crença de que uma mulher é uma candidata menos desejável por ser mãe ou poder engravidar; na famosa pergunta ilegal em entrevistas de emprego “pretende ser mãe num futuro próximo?”; na total desinformação em relação à lei — que prevê a possibilidade de licença repartida entre pai e mãe (ou em situações de apadrinhamento civil); e na desvalorização da relação intrínseca entre uma vida pessoal feliz e a produtividade no trabalho. Fazendo as contas, dá desigualdade de género.
Não nos esqueçamos de que a economista Claudia Goldin, vencedora do prémio Nobel de Economia, em 2023, constatou que, atualmente, as diferenças salariais entre homens e mulheres com a mesma profissão começam, regra geral, com o nascimento do primeiro filho. Além disso, a sua investigação provou que a educação na juventude tem impacto nas oportunidades de carreira ao longo da vida da pessao. Ou seja, as decisões tomadas pela geração anterior, em termos de parentalidade e hierarquia laboral, impactam significativamente as carreiras das pessoas que entrarão para o mercado de trabalho. Desta forma, é necessário que haja chefias informadas e pessoas em altos cargos públicos que não só saibam a legislação, como a procurem implementar e melhorar para obtermos uma sociedade mais justa e equitária, tendo em conta as características biológicas das pessoas. Ou seja, não podemos fazer com que homens cis engravidem, mas podemos zelar pela igualdade de oportunidades no mundo do trabalho: no sentido de respeitar a escolha da maternidade, na questão de procurar que se implemente a licença de parentalidade repartida.
Como afirmou Sandra Benfica, representante do Movimento Democrático das Mulheres, “Há direitos conquistados e é tempo de reconhecer o trabalho das mulheres. [O número de mulheres] é uma conquista civilizacional e não um constrangimento. (...) É tempo de deixar as mulheres fora das fogueiras”.
As mulheres lutaram séculos para poderem fazer carreira profissional, mesmo com os persistentes tectos de vidro nas hierarquias organizacionais. (Ainda há contextos geopolíticos em que tal não é possível, como no Afeganistão.) Desta forma, um discurso como o de Lucília Gago insulta a luta feminista que ainda hoje se trava. Além disso, não nos podemos esquecer de que ter filhos, no nosso país, não é meramente uma opção, é um desafio de recursos. Temos uma falta terrível de obstetras no SNS, os salários dos profissionais de saúde são terríveis, as condições de construção de muitos hospitais deploráveis; creches e infantários cheios e, mesmo havendo vagas para regime de IPSS, os preços são de um impacto imenso no rendimento familiar, já para não falar no valor das rendas que podem chegar a mais de 1000€ por um T1. Por isso, se uma mulher decide ter um filho, é de valorizar, abraçar, congratular e apoiar. Não é uma licença de maternidade que vai pôr em causa uma organização ou o Ministério Público, mas antes, uma má gestão de recursos humanos e de capital que o faz, para além de uma falta extrema de empatia. Veja-se o exemplo do DST Group que tem uma sala de amamentação com frigorífico exclusivo da sala e cadeirões confortáveis para as trabalhadoras, para além de outras regalias para os trabalhadores e trabalhadoras, sem olhar a hierarquias. Quando se gere uma empresa com empatia, para além de capital, constrói-se um mundo não só mais justo como feliz.
Mas, se no entanto, quiserem ver as pessoas como capital, também o posso fazer. Num mundo capitalista atual, que vê os trabalhadores como capital, como parte integral e intrínseca do que é a organização (empresa) — tanto que são chamadas de ‘colaboradores’ —, uma mulher que decida procriar está a potenciar a economia do país. Se um homem se magoasse, também ficaria de baixa médica. A grande diferença, que torna esta comparação absurda, é que uma mulher que teve um bebé não partiu um pé, pariu uma nova pessoa para o mundo. Seria, no mínimo, de valorizar essa decisão tão importante na vida de alguém. Assim sendo, as mulheres que engravidam mais depressa deveriam ser premiadas economicamente do que penalizadas. Mais bebés em Portugal, mais contribuintes para o país. Não é isso que o Estado quer, fazer do nosso útero casa-mãe de futuros contribuintes? Mais adianto que não concordo com esta visão de pessoas como mero capital, e muito menos de mulheres como parturientes de contribuintes, mas se é para a falar de “constrangimentos” em organizações, então falemos de diferentes perspetivas.
Concluindo, justificar uma falta de recursos através do facto de dois terços dos funcionários serem mulheres que possivelmente engravidam, é toldar os olhos dos portugueses com misoginia. As licenças de parentalidade, hoje em dia, podem ser totalmente igualitárias entre pai e mãe ou num apadrinhamento civil. É totalmente descabido assumir que uma mulher vai ser menos produtiva, no panorama geral profissional de carreira, porque é mãe. (Até vos digo que mais depressa se torna especialista em multi-tasking). Além disso, há outra camada de ironia: enquanto uma mulher é recorrentemente penalizada por ter sido mãe, ou até dispensada “por outros motivos, claro”, muitas vezes o homem-pai consegue um aumento, porque agora tem de providenciar para mais membros da família. Notícia de última hora: não estamos no tempo de Salazar e muito menos queremos voltar a esse tempo de miséria económica e cultural. Mais noção de contexto socioeconómico e menos desigualdade de género, sem favor.
Cara Lucília Gago, o que constitui um “fator de agravamento de constrangimento” é o seu machismo.
Não, obrigada,
Clara