No passado dia 5 de setembro, foi notícia em todos os jornais que Dominique Pelicot, durante 10 anos, drogou a esposa para que ele e outros 90 homens contratados pelo mesmo, num site online, a pudessem violar. Como noticiado mais recentemente pelo Jornal Público, “os investigadores contaram cerca de 200 casos de violação”, sendo que a maioria foi cometida pelo marido e os restantes por 90 desconhecidos.
Estes dados foram comprovados graças à descoberta de uma pasta intitulada “abusos”, onde se encontravam 20 mil ficheiros, vídeos e imagens das referidas violações. Ora, por muito que estes crimes tivessem sido comprovados, sabendo-se publicamente o homem que os praticou, as manchetes das notícias sobre este caso horrendo referiram sempre a ação de Dominique como passiva. Em nenhuma se lê “Homem viola esposa” ou “Dominique Pelicot drogou a esposa durante 10 anos para que ele e outros homens a violassem”. Em vez disso, usam o termo passivo “mulher violada”. Esta lengalenga de retórica que retira o agressor do discurso noticioso, infelizmente, não é novidade nenhuma, aliás, é um assunto que vai sendo falado dentro da esfera feminista. No entanto, visto que voltou a acontecer em praticamente todos os meios de comunicação, observemos as manchetes relativos a estes crimes de violação:
“Violada por estranhos recrutados pelo marido durante uma década. O caso que está a chocar França.” (notícia aqui)
“Mulher violada por homens contratados pelo marido "salva" pela revelação do caso” (notícia aqui)
“Mulher violada por mais de 80 homens com ajuda do marido diz que quis morrer quando soube”(notícia aqui)
‘Mulher drogada pelo marido e violada por dezenas de homens quebra o silêncio: "Fui uma boneca de trapos"’ (notícia aqui)
‘"Viam-me como uma boneca de trapos, como um saco do lixo": mulher violada por mais de 80 homens a convite do marido falou em tribunal’ (notícia aqui)
Violada por 72 homens a mando do marido, Gisèle falou hoje pela 1.ª vez (notícia aqui)
Repare-se, novamente, como em nenhum dos títulos se leu “Marido violou a mulher”, mas sim “Mulher violada”. As violações não são algo que simplesmente acontece, como quem tropeça sozinha na rua porque vai distraída com o telemóvel. A violação é feita por alguém. A ação deveria ser apresentada ativamente indicando quem a praticou. A narrativa deveria ser direcionada sempre para quem toma a ação, neste caso, o violador. A mulher não foi violada do nada, foi o próprio marido dela que o fez, durante 10 anos, contratando 90 homens para o fazer também.
Quando direcionamos a força da notícia para a vítima, fazendo com que a ação do agressor ou abusador se torne passiva — “nome da vítima foi violada” — estamos a apagar o agressor da narrativa. Além disso, ao falarmos recorrentemente do nome da vítima, ao invés do nome do comprovado agressor, estamos a potenciar uma ligação futura automática entre o nome da vítima e o crime contra ela cometido, ao invés de reforçar a ligação entre o nome Dominique Pelicot e a palavra “violador”. (...) Não é ela que deve ser lembrada como “aquela mulher que foi violada”, mas sim Dominique Pelicot que deve ser sempre lembrado como “aquele homem que drogou e violou a mulher”.
Felizmente, a força dela é tão forte que não tem medo nenhum de dar a cara, se isso significa obter a justiça máxima possível para um caso tão tenebroso quanto este. Mesmo assim, ao invés de partilharem somente o nome da vítima, peço-vos que nunca retirem o nome do abusador da narrativa. Ele chama-se Dominique Pelicot e decidiu drogar a mulher durante 10 anos para que ele e mais 90 homens contratados a violassem, somando conjuntamente 200 casos de violação.
Esta mesma tipologia de descrição de crime de forma passiva foi aplicada aquando a notícia de que a atleta olímpica maratonista morreu devido ao facto de o parceiro a ter queimado viva. O nome da atleta apareceu nas manchetes de todos os jornais, mas o nome do homem que a queimou não. Ele chama-se Dickson Ndiema e assassinou a parceira, queimando, deliberadamente, mais de 80% do corpo da parceira, o que a levou à morte.
Para concluir, deixo sugestões de alteração de algumas das manchetes acima referidas:
- Mulher violada por homens contratados pelo marido "salva" pela revelação do caso
Esposa descobre que o marido e homens contratados pelo mesmo a violavam, através da revelação do caso; - Mulher violada por mais de 80 homens com ajuda do marido diz que quis morrer quando soube;
Mulher descobre que o marido e mais de 80 homens contratados por ele a violaram: “quis morrer quando soube” [não sei se esta última parte era mesmo necessária, mas enfim]; - Mulher drogada pelo marido e violada por dezenas de homens quebra o silêncio: "Fui uma boneca de trapos"
Marido droga a própria esposa para ser violada por dezenas de homens. Esposa quebra o silêncio: “Fui uma boneca de trapos”; - Violada por 72 homens a mando do marido, Gisèle falou hoje pela 1.ª vez
Dominique Pelicot contratou 72 homens para violar a esposa. A vítima falou hoje pela 1.ª vez.
Nunca se esqueçam do nome das mártires, vítimas do machismo no seu estado mais vincado e profundo. E nunca se esqueçam dos nomes dos homens que circulam neste planeta e que foram capazes de praticar estes crimes desumanos. Porque se há coisa que estes criminosos não merecem é paz.
Uma nota final:
O nome das duas vítimas dos referidos crimes não foram mencionados no artigo, por forma a vincar o propósito do mesmo. No entanto, que não nos esqueçamos destas mulheres, com carinho, com louvor, com sentido de comunidade.
Sugestão de leitura continuada:
Ao contrário do que se pensa, não são os homens desconhecidos que representam maior perigo para as mulheres. Os homens que constituem maior perigo são os que elas conhecem, especialmente os seus familiares.