Dei por mim a pensar em quantas poetas mulheres me falaram na escola: uma, Sophia de Mello Breyner. Dei por mim a pensar quantos livros li escritos por mulheres de bibliografia obrigatória na escola: um, a Menina do Mar, outra vez de Sophia de Mello Breyner. Sophia esteve lá muito bem, mas onde estavam as outras mulheres escritoras? Estudámos todas as pessoas de Fernando, os cantos d’Os Lusíadas pormenorizadamente. No entanto, passámos mais tempo a estudar o Monstro do Cabo das Tormentas do que a falar de escritoras mulheres. (Aliás, alunos e alunas têm-se questionado sobre o ensino d’Os Lusíadas como um louvor à pátria descabido, já que glorifica o colonialismo.)
Até que ponto se pode realmente ter uma visão literária plural se só se estudam homens?
Conhecemos personagens femininas que se apaixonam pelo irmão, que se atiram ao mar, que morrem de desgosto de amor, que são meros destinatários de cartas. São estes os exemplos que queremos para as nossas filhas? Estas perspectivas de amor e descrições de feminilidade contadas apenas pelo olhar de homens? Prefiro a amizade da Joana e da falecida Marta com as drogas. Venha a 27.ª edição da Lua de Joana.
Para além da grande maioria das pessoas escritoras nos currículos de Língua Portuguesa serem do género masculino, praticamente todas elas são brancas. A falta de representatividade e de perceber o privilégio de ser branco leva a desigualdades não só de tratamento, mas também de pensar o futuro: como se sentirá uma criança negra que só lê autores brancos na escola? Sandra Baldé refere as consequências desta realidade na sua crónica, intitulada “que em 2023 as crianças pretas se amem um pouco mais”. A mesma falta de representatividade existe para relacionamentos e personagens que saltem fora da heteronormatividade.
Será que esta mesma tendência masculina se impõe na última versão do PNL?
A verdade é que, por muito que já haja bastantes autoras mulheres no Plano Nacional de Leitura — em menor número que autores homens, claro—, as obras analisadas na escola são predominantemente masculinas (e nada cativantes).
Há uma dificuldade real em criar hábitos de leitura em crianças e jovens que cada vez mais estão colados a ver vídeos de trends sem qualquer informação útil. Ora, garanto que não é com falta de representatividade que se resolve o problema. Precisamos de mais atenção a livros escritos por mulheres, de representatividade de cores de pele, de enredos cativantes, de personagens e autores, e de representatividade LGBTQIA+ nas obras e excertos exemplificativos do currículo de Língua Portuguesa.
Claro que é importante olharmos para os clássicos, mas não conseguimos cativar os jovens quando os estamos constantemente a aborrecer. Basta pensar: quantas vezes ouvimos alguém dizer, com honestidade, “Amei a descrição dos azulejos d’Os Maias”? “O meu escritor favorito é Luís de Camões”?, ou “O meu ídolo é Gil Vicente”?
(Da minha crítica salvo o Memorial do Convento, como Camões salvou da água Os Lusíadas, porque a Blimunda e o sarcasmo de Saramago vivem com carinho no meu coração.)
Mesmo neste panorama do PNL ainda masculino, fico contente por ver uma obra explicitamente queer, Heartstopper, de Alice Oseman, na lista, assim como, a título de exemplo, várias obras de Virgina Woolf e a Antologia Poética de Cecília Meireles (poeta, não poetisa), e até livros sobre igualdade de género. Mas não nos fiquemos no “podia ser pior”, já que a estagnação é inimiga da evolução.
Um nota sobre literatura, liberdade e preconceito
Dentro da questão literária pró-LGBT, foi tornado público recentemente que Mariana Jones— escritora de vários livros, incluindo O Pedro gosta do Afonso — tem sido regularmente vítima de ameaças, por ter escrito um livro em que o amor não se desenvolve apenas entre rapaz e rapariga, mas entre dois rapazes. As ameaças são recorrentes, de várias pessoas. A escritora realça as intervenções crueis e criminosas de Djalme dos Santos, membro da associação de extrema-direita "Habeas Corpus". As intimidações de Djalme não se limitaram ao meio digital — o que já seria demais por si só —, tendo culminado numa interpelação direta na Feira do Livro de Lisboa, em que o sujeito filmou a escritora a um palmo da cara, chamando-lhe “promotora da homossexualidade infantil e pedofilia”.
Nesse momento, Mariana percebeu que o ódio já não era contra o livro, mas contra ela mesma, como pessoa. Dada a gravidade da situação, a escritora está com o estatuto de vítima e o seu caso foi remetido para o Ministério Público.
O facto de haver uma conotação errada entre homossexualdiade e pedofilia é só mais uma das razões pelas quais é importante haver representatividade da comunidade LGBTQIA+ na literatura. Porque qualquer orientação sexual é natural. A pedofilia em nada tem a ver com amor ou relacionamentos saudáveis e naturais. Pedofilia é crime.
Para todos os pais e mães que me lêem: não tenham medo que os vossos filhos sejam gays, mas antes, lutem por um mundo em que, sendo real essa possibilidade, tal não ponha em causa a segurança pessoal dos vossos filhos e filhas. Repito, é tão natural a heterossexualidade como a homossexualidade ou bissexualidade. Quer queiram acreditar ou não, quer vos pareça que “agora ser gay é moda”. Não é uma questão de moda, é uma questão de liberdade de expressarmos a nossa orientação sexual.
Comprem livros escritos por mulheres (não faltam livros de qualidade), e livros sobre questões LGBT, que as tratem com naturalidade, para os vossos filhos. A orientação sexual não é uma coisa que se pegue, não funciona por contágio. Não é por terem amigos gays que vão ser gays, não é por lerem livros com um casal gay que se vão tornar gays. A representatividade de um livro, ou de uma realidade próxima, faz com que, na eventualidade de serem gays, os vossos filhos se sintam mais abraçados, mais compreendidos; e que na eventualidade de conhecerem pessoas gays, sejam inclusivos e empáticos. A literatura tem muito poder no processo de alargar os horizontes das pessoas e desconstruir preconceitos.
Esta barca vai em direção à igualdade de género
Nós, mulheres, estamos cá. As nossas palavras são mostradas de menos, os nossos sentimentos são calados demais. Se não nos abrirem as portas, nós derrubámo-las e mostramos ao mundo o que é o Sublime. O Plano Nacional de Leitura está a fazer um caminho lento, mas quero acreditar que esta barca vai em direção à igualdade de género.
Se usássemos o tempo de leitura da descrição dos azulejos da casa d’Os Maias para conhecer mais escritoras mulheres, as coisas já melhorariam um pouco. E isso seria o mínimo dos mínimos com tempero forte de sarcasmo. As escritoras mulheres existem e têm muito a dizer. A representatividade feminina no estudo da literatura não se pode cingir à existência de personagens femininas em contos escritos por homens, ou ao serem o destinatário de cartas de amor escritas por homens. O machismo é estrutural, desde a vida real à insistência nos sonetos da Epopeia nas aulas de Português. E há mais pessoas para além do Fernando.
De seguida, deixo uma seleção das minhas sugestões de autoras mulheres. Realço a escritoraHelena Magalhães no contexto desta crónica, já que a autora e editora é muito vocal acerca da falta de representatividade das mulheres nos destaques da Literatura, tendo inclusive fundado uma chancela que só publica autoras mulheres, aAurora.
Recebeu uma Mensagem: existem mulheres poetas
Adília Lopes
Ana Luísa Amaral
Eneida Nelly
Florbela Espanca
Gisela Casimiro
Isabel de Sá
Maíra Zenun
Odete Semedo
Regina Guimarães
Raquel Lima
E muitas mais.
Sermão Feminino ao Rebanho
Agustina Bessa-Luís
Ana Bárbara Pedrosa
Alexandra Lucas Coelho
Buchi Emecheta
Chimamanda Ngozi Adichie
Cláudia Lucas Chéu
Djaimilia Pereira de Almeida
Djamila Ribeiro
Helena Magalhães
Lídia Jorge
Maria Archer
Maria Judite de Carvalho
Maria Ondina Braga
Michelle Nkamankeng
Paulina Chiziane
Patrícia Reis
Yaa Gyas
E muitas mais.