Geração E

A esquerda pode voltar a crescer: deve deixar o moralismo à porta e convidar as pessoas a entrar

A esquerda tem de crescer de fora para dentro, voltar a ouvir a população, apoiar as suas bases ideológicas no estado social. Que não se olhe para os votantes do Chega como fascistas retrógrados, mas sim como cidadãos indignados com o estado do país, que viram num projeto político construído à semelhança de tantos outros projetos políticos de direita securitária na Europa e nas Américas, uma forma de protesto

“Oppenheimer” foi o grande vencedor da cerimónia dos Óscares do último domingo, no entanto, na mesma noite, a verdadeira bomba explodiu aqui, do outro lado do Atlântico. A noite eleitoral de 10 de março merecia, no mínimo, uma estatueta para melhor guião original.

Uma narrativa repleta de emoção até aos minutos finais e com todos os ingredientes para uma curta-metragem até às próximas eleições, com trocas de ADN, um resultado digno de photo finish e um ator secundário que acabou triunfante na categoria dos atores principais.

Uma noite que culminou na ascensão de Ventura ao púlpito a clamar pela cabeça dos diretores das entidades responsáveis pelas sondagens e a prometer uma vitória avassaladora do Chega num futuro ato eleitoral. E se esse dia parecia longe antes da noite de dia 10, uma liderança frágil do PSD nos próximos quatro anos (ou menos, dependendo da duração da legislatura e do próximo Orçamento do Estado) e uma oposição extremada do PS pode antecipar essa ascensão do partido da direita securitária.

Um pouco antes, Pedro Nuno Santos apressou-se a assumir a derrota e a afirmar que o PS liderará a oposição durante os próximos quatro anos. A urgência do Partido Socialista em declarar-se o maior opositor à liderança da Aliança Democrática tem com objetivo diminuir a influência do Chega na Assembleia da Républica, no entanto, é sintomática de uma mudança da configuração parlamentar e da vontade dos portugueses. O crescimento do partido de André Ventura e a consolidação da posição da Iniciativa Liberal demonstram que a hegemonia política e cultural da esquerda terminou.

A tal mudança de ciclo democrático após 50 anos está consumada. Aliás, mudança essa que Marcelo profetizou um dia antes das eleições, e da qual se pode vangloriar, já que o PR foi um dos principais artífices desta transição do eixo político vigente. Os portugueses estão revoltados e mostraram esse descontentamento nas urnas, com uma redução histórica da abstenção e com o voto em forças políticas fora do quadrante dos partidos tradicionais.

Esta diversificação do comportamento eleitoral exige uma reflexão de todos os partidos, principalmente dos que ocupam lugares mais à esquerda na Assembleia. Há uma renovada predisposição do eleitorado para votar em novos espaços políticos, uma mudança do comportamento da sociedade civil, que prefere confiar no novo e desconhecido, do que no velho sistema, longe de ser incorruptível. O ultraliberalismo, o securitarismo ou o europeísmo ecológico, todos têm espaço debaixo do mesmo teto de soberania democrática. A esquerda pode beneficiar muito desta mudança de paradigma a longo prazo, mas não pode jogar para o empate. Isto implica deixar a narrativa do voto útil e abandonar um ideal de superioridade moral/intelectual.

Num tempo de polarização baseado no discurso corrosivo, que dilacera o tecido social português, destrói a confiança nas instituições, que coloca uns contra os outros, os bons contra os maus e os trabalhadores contra os “subsidiodependentes”, é essencial que a esquerda construa pontes. Que volte a unir o que o populismo está a desintegrar.

Os partidos à esquerda não se podem debruçar sobre si mesmos num canto, antagónico ao da direita conservadora, numa oposição moralista e petulante. Devem estender-se por toda a esquerda até ao centro, porque agora há essa oportunidade, a oportunidade de ocupar toda a metade do eixo que ficou órfão durante os últimos meses.

Parte decisiva desse trabalho de unidade é devolver a voz a dois grupos sociais, que historicamente sempre votaram mais à esquerda, mas têm gradualmente encontrado nos novos partidos como a IL ou o Chega a resposta às suas preocupações – os jovens adultos e os trabalhadores em idade ativa menos escolarizados. Esta transferência de voto reforça a necessidade de repensar a forma como se comunica com estes setores da sociedade. A narrativa protosindicalista da defesa das condições materiais dos trabalhadores já não é suficiente, porque a génese da organização laboral mudou, a influência dos privados cresceu e a introdução de novas tecnologias nos ecossistemas laborais tornou-os mais atomísticos.

Os eleitores que constituem a força de trabalho, principalmente no setor primário e secundário, onde o Partido Comunista sempre teve muita força, transferiram grande parte dos seus votos para o Chega. Esta dinâmica foi notória na região de Setúbal, bastião das lutas operárias na década de 70, amplamente apoiadas pelo PCP, que culminaram numa longa tradição de domínio comunista e socialista, revertida neste ato eleitoral. O Chega tem um projeto político deveras estatizante, apesar de professar o liberalismo económico. A ideia de Estado hegemónico que têm um reflexo nas formas de organização sociais e laborais, com objetivo último de expandir os direitos dos trabalhadores, está presente também na génese ideológica do Chega.

O apelo muito insistente de André Ventura para uma melhoria imediata da remuneração dos polícias (que creio ser uma medida com a qual é fácil de concordar por parte de quase todos os partidos), chamando a si o porta-estandarte dessa luta, é um claro apelo à consciência de classe muito típica da ortodoxia comunista, apesar de reiterar com veemência o seu ódio aos comunistas.

Para além disso, também os jovens até aos 34 anos votaram de forma massiva nos novos partidos de direita. Não podemos ignorar que a maioria do conteúdo político consumido por esta faixa etária depende das redes sociais, onde a Iniciativa Liberal e o Chega são reis e senhores. Isto reforça a necessidade de um esforço de modernização dos partidos à esquerda. Os métodos tradicionais já não atraem o eleitor comum, agora a batalha política trava-se noutras arenas.

Não se leva um martelo e uma foice para um terreno onde proliferam as máquinas, a desinformação e os tempos da pós-verdade. Nas plataformas digitais apela-se ao voto, romantiza-se o voto e, por vezes, torna-se o voto num autêntico reality show, mas também aí se podem discutir medidas para o país de forma séria. O Livre foi muito competente nesta vertente, com presença em vários formatos de debates e entrevistas online, com aparições frequentes do próprio Rui Tavares. O que surtiu efeito a julgar pelos resultados, complementados por outras variáveis que definiram a intenção de voto, que serão certamente analisadas por cientistas políticos no rescaldo destas legislativas.

Então porque não usar o digital para explicar ao público mais jovem temas fraturantes para o futuro político do país. Os benefícios e desafios colocados pela imigração num reel? Ou como balançar a entrada positiva de mais contribuintes em idade ativa com a manutenção da segurança nacional num short do youtube? É possível manter a credibilidade e a profundidade de informação enquanto se inovam os formatos de difusão de ideias.

As bases ideológicas dos partidos de esquerda continuam a ser a fundação necessária para voltar a cativar o eleitorado descontente. O apoio à União Europeia é quase consensual, as preocupações ambientais são transversais, a aposta no desenvolvimento do ensino superior e investigação é um dos seus pilares e a igualdade de direitos para todos os grupos minoritários ou em situação de fragilidade também. Falta comprovar que, em simultâneo com este alinhamento de ideais, é possível melhorar a condição económica da população, o que foi titubeante nos últimos anos de governação.

Deve ser imputada à estagnação dos últimos governos o fenómeno do crescimento abrupto do populismo em Portugal, anómalo em rapidez mesmo quando comparado com outros projetos populistas da Europa como o Vox ou os Fratelli d’Italia, da primeira-ministra Giorgia Meloni. No entanto, o populismo é como uma lagosta, cresce por dentro, mas a sua inflexível carapaça não se move, até que esse crescimento começa a ser doloroso, pois a crosta inerte não aguenta a expansão do corpo interno. Precisa de ideias novas, de mais profundidade. Nesse momento de convergência, terão de mudar para uma nova casca, mais espaçosa, muito mais moderada, absorvidos por um sistema que sempre desdenharam.

Sendo assim, enquanto o populismo cresce de dentro para fora e se modera, a esquerda tem agora tempo para crescer de fora para dentro, voltar a ouvir a população, apoiar as suas bases ideológicas no estado social. Que não se olhe para os votantes do Chega como fascistas retrógrados, mas sim como cidadãos indignados com o estado do país, que viram num projeto político construído à semelhança de tantos outros projetos políticos de direita securitária na Europa e nas Américas, uma forma de protesto. Para recuperar as bases de apoio que outrora já foram suas, a esquerda deve aproveitar o seu papel na liderança da oposição, sem responsabilidade governativa, para redefinir o contacto com o eleitorado e expor os benefícios e prejuízos das suas propostas de forma clara, sem os moralismos do voto útil que ostracizaram mais de um milhão de eleitores nos últimos anos.