Geração E

Apoiar a Ucrânia não pode ser uma moda

Precisamos de ser vocais e consistentes na defesa de uma causa justa, o apoio à Ucrânia, em que Portugal pode desempenhar o seu papel, sobretudo junto dos nossos parceiros lusófonos, para que um discurso antiamericano não se torne num discurso russófilo

A coleção de inverno de 2022 trajou de amarelo e azul uma encarnação solidária, que a primavera levou para uma nova estação de unidade num vagão apinhado de humanidade, perante barbaridades pregadas em Bucha que noutros tempos surgiam, igualmente, no fim da linha.

Já este verão azul foi deixando para trás a camisola amarela que dava pedalada ao pelotão de apoio, porque o combustível continua caro, e o outono, sabendo que a leste nada de novo, foi murchando o que fragilmente florescia. Com o tempo quase tudo o vento levou, mas nem todas as bandeiras são cata-ventos, especialmente quando se hasteia o estandarte de uma pátria.

O imediatismo do ativismo de hashtag e a falta de uma bússola axiológica que norteie as nossas convicções leva-nos a deambular por argumentos falaciosos, regressando-se à inércia do conforto de quem prefere sentar a sentir. A preguiça ética e o desleixo racional levantam-se quando apelam ao nosso individualismo, pois não é connosco; e ainda fica longe, e quando instrumentalizam a palavra paz, ironicamente legitimando a guerra, cai-nos o pano branco e empunhamos o vazio.

Talvez por considerarmos o curso da história uma inevitabilidade, carregamos a ingenuidade de quem acredita que a vitória é sempre dos virtuosos, mesmo sem o derrame de sangue, suor e lágrimas. Perante o manejo da verdade é preciso consolidar a realidade.

Voltemos ao início, aos tempos que alguns anunciaram como o fim da história. Com a dissolução da União Soviética, a Ucrânia recuperou a sua independência, escolhendo decidir os seus próprios destinos autonomamente, através de um referendo com 92% de votos a favor e uma afluência de 84%, autorizado e validado por órgãos competentes. A Ucrânia é um Estado soberano, reconhecido pelos demais.

Em 1994, a Ucrânia abdicou do arsenal nuclear na sua posse, o terceiro do mundo, através do Memorando de Budapeste, que consagrou garantias de segurança da Rússia, Estados Unidos e Reino Unido contra a ameaça da sua soberania e integridade do seu território por força militar ou coação económica. A Ucrânia dificilmente será uma ameaça à Rússia, a Rússia é seguramente uma ameaça à Ucrânia.

Internamente, a Ucrânia viveu muitos anos conturbados, num longo e difícil processo de consolidação democrática e de desenvolvimento ainda em concretização, com escândalos de corrupção e de fraude eleitoral, que levaram em 2004 à revolta laranja, e uma enorme frustração com o seu rumo, que culminou dez anos depois com as manifestações na praça Maidan, que exigiam o prometido aprofundamento de relações com a União Europeia. Estas firmes reivindicações ao longo de meses levaram a que o Presidente Viktor Yanukovych abandonasse o país. A Ucrânia não se tornou uma marioneta da Europa, a Ucrânia é Europa, e democraticamente elegeu um novo presidente, que perdeu a sua reeleição para o atual chefe de estado, nenhum deles com uma retórica belicista.

Ainda em 2014, aproveitando a instabilidade vivida no país e a debilidade das suas forças armadas, a Rússia invadiu a Crimeia, onde já tinha uma base, visando a sua anexação e promoveu um conflito na Região de Donbass (Donetsk e Lugansk). Os acordos de Minsk diminuíram a intensidade dos combates, mas foram sempre sujeitos de interpretações diferentes. Em 2022, e de forma não assumida, a Rússia lançou uma invasão de larga escala sobre a Ucrânia, criando pretextos que legitimassem a dita operação especial. A Ucrânia não vive numa guerra civil, sofre uma agressão contrária ao Direito Internacional.

O Direito Internacional, apesar das suas vicissitudes, é claro quanto à proibição do uso da força “contra a integridade territorial ou a independência política de um Estado”, tal como é inequívoco quanto à legitima defesa “no caso de ocorrer um ataque armado”. O Estado russo tem consciência do incumprimento flagrante das suas obrigações internacionais, alternando a sua narrativa entre negação de factos notórios e a reclassificação criativa dos mesmos. Apoiar a Ucrânia é defender uma ordem internacional baseada em normas.

Apoiar inequivocamente o direito de legítima defesa de um Estado agredido não é glorificá-lo como o arquétipo do Estado de Direito Democrático, nem afirmar uma superioridade moral do Ocidente, é primar pelo cumprimento de regras de sã convivência entre nações e condicionar estratégias intimidatórias. A mais de quatro mil quilómetros da frente de combate, a falta de empatia não nos pode resignar.

São literalmente os nossos vizinhos que lá estão. Constatei esse facto no terreno em 2022 ao prestar apoio humanitário, como tantos outros portugueses o fizeram. Numa das reuniões numa pequena cidade ucraniana com o departamento social dessa autarquia, a diretora disse-me que podíamos falar na língua de Camões, e em poucas palavras apercebi-me que tinha vivido no Pinhal Novo, a duas ruas de mim. Também não são casos isolados o senhor que nos ajudou a fazer chegar apoio a um orfanato, que não falava inglês, mas falava português por ter trabalhado no Algarve, ou o médico do hospital de Viseu que voltou para a Ucrânia para cuidar do seu país no dia a seguir a começar o conflito.

Tendo presente o contributo de milhares de ucranianos para o nosso país, também nós portugueses fomos exímios na solidariedade com a Ucrânia, abrimos as nossas casas e espontaneamente enviámos materiais necessários. Passados dois anos, pede-se que enquanto comunidade revigoremos o compromisso perante um povo que não abdica da sua dignidade e que valorosamente luta com e pela sua integridade.

Numa altura de grandes incertezas dos dois lados do Atlântico, num tempo de crescentes polarizações das sociedades, precisamos de ser vocais e consistentes na defesa de uma causa justa em que Portugal pode desempenhar o seu papel. Junto dos nossos parceiros, sobretudo lusófonos, precisamos de salvaguardar que um discurso antiamericano não se torne num discurso russófilo, e no seio da União Europeia assegurar que o apoio “até quando for necessário”, não se reformule para até quando for popular e estiver na moda, porque só o alento dos valores que nos unem podem garantir a vitalidade do velho continente.