Geração E

25 de abril s...ó de vez em quando?

Este ano celebramos os 50 anos do 25 de Abril. É também o ano em que assistiremos a “um protesto contra muçulmanos” convocado por uma organização de extrema-direita. Assim, importa salientar que além deste ano, há que celebrar abril todos os dias, a todas as horas. E celebrar abril terá sempre de ser mais do que picar o ponto e descer a Avenida a horas certas

Conforme tem sido recordado nos últimos tempos, 2024 não é um ano qualquer. No mês de abril, celebraremos os 50 anos da nossa democracia e, como dizem alguns, este aniversário deverá ser passado a defendê-la, especialmente atendendo ao difícil período eleitoral que se avizinha.

Não discordando do vaticínio, acredito que importa ir mais além, e aproveitar o marco do meio século para refletir, efetivamente, sobre o que é, e sobretudo o que se quer desta democracia. Não sendo perfeita, será ela, por enquanto, o melhor modelo que temos para organização da sociedade, atribuição e controlo do poder, e utilização e distribuição dos recursos. Quem olhe para o Portugal de há 50 anos e para o de agora verá, é inegável, um progresso estratosférico. No seguimento da revolução de abril, foram feitas importantes conquistas que hoje se refletem nas condições e direitos que muitos tomam por adquiridos. De facto, o Portugal de hoje oferece garantias. Somos mais saudáveis do que antes, estudamos mais, temos mais estradas, mais hospitais, mais escolas, mais e melhor imprensa, temos acesso à cultura, temos empregos, produzimos, fomentamos e exportamos. Foi um longo caminho para chegar a esta casa. E se calhar até ficava já por aqui. Porém, como lembrava há pouco tempo Rui Tavares, para se perder a democracia, basta tê-la.

Não me querendo prestar a alarmismos sobre um potencial futuro distópico; tolo – ou cego – será quem olhe à volta e não repare nos sinais, não identifique os sintomas. Embora paire por aí mais ou menos desde sempre, tem pesado cada vez mais um crescente desconforto, qual apertão na barriga ou sopro na nuca. As principais inquietações que me proponho a elencar não serão novidade para ninguém, mas nunca é demais lembrá-las, porque são elas que de facto nos enclausuram, gerando frustração, descontentamento e polarização.

É o caso da grave crise habitacional que atualmente enfrentamos, que coloca Lisboa no pódio das cidades mais caras para arrendar e comprar casa. Como é sabido, o relaxamento das leis de arrendamento, a proliferação descontrolada de alojamentos locais, e a má gestão de habitações camarárias resultaram em aumentos desenfreados nos preços da habitação, forçando famílias inteiras a deixar os seus bairros, e destruindo qualquer esperança para inúmeros jovens profissionais de adquirir habitação própria. A estas, juntam-se ainda curiosas medidas como o visto para nómadas digitais, destinado a atrair trabalhadores remotos de salários elevados, contribuindo para a retirada do mercado de 80% dos quartos destinados a estudantes. É insólito, mas desengane-se quem achar que as políticas de habitação se fazem para quem, de facto, já residia no país, visto que há peixe bem mais graúdo pronto a vir à rede.

Para piorar o quadro, o país continua a fazer face a uma persistente estagnação salarial, tanto no setor público como no privado, curiosamente acompanhada de, todos os anos, notícias de lucros sem precedentes para os grandes grupos económicos. Os baixos salários auferidos por uma larga parte dos portugueses não só comprometem o seu nível de vida, como os levam a tomar decisões difíceis, como mudar-se para fora das suas cidades, ou até emigrar, muitas vezes para países europeus com capacidade para oferecer salários mais elevados. Como noticiado recentemente pelo Expresso, este fenómeno atinge particularmente os jovens, sendo que mais de 850 mil com idades entre os 15 e os 39 anos deixaram o país nos últimos anos.

A par destes fenómenos, surgem inevitavelmente as ideias bizarras. Na semana passada lia uma entrevista na qual se propunha o aumento da propina como forma de combater o êxodo significativo de jovens qualificados. De acordo com o artigo, tal aumento afigura-se necessário visto que “com grande probabilidade, os jovens depois vão-se embora e não beneficiamos desse investimento”. Desculpe, mas não. Esta proposta, de lógica dificilmente inteligível, poderá ser sintomática de outra crise que hoje enfrentamos, a crise do vazio de ideias construtivas para o país, da ausência dum pensamento orientado para servir as gerações atuais e vindouras, que procure ir além do mero mais ou menos. O desenvolvimento intelectual e a aquisição de qualificações são, sabemos, essenciais para fomentar o crescimento tanto individual como coletivo, pelo que, numa sociedade avançada, não se devem inserir numa mera lógica transacional entre o cidadão e o estado.

Face a este triste caldo, e já saberão onde vou com isto, certas vozes erguem-se para apontar o dedo. São as vozes dos anónimos do Twitter que partilham notícias falsas, vozes dos não anónimos que pregam a quem queira ouvir que a culpa é de quem mora no Martim Moniz e entrega comida quentinha por meia dúzia de tostões, e também, sejamos claros, vozes dos que ocupam uma parte não menosprezável dos lugares no Parlamento. Os tempos passam e as inquietações adensam-se, pelo que as vozes não hesitam em dominar a narrativa, retorcê-la um pouco, e voltar a servi-la como convém.

Os tempos passam, as inquietações adensam-se, as exaltações também. Muitos põem o dedo na ferida, mas quase ninguém põe a mão na consciência. Crescem muros, e escasseiam o pensamento, a compreensão, a empatia, a vontade resoluta de traçar e percorrer o caminho para casa.

Este ano celebramos os 50 anos do 25 de Abril. Será também o ano em que, ao que tudo indica, assistiremos a “um protesto contra muçulmanos”, convocado por uma organização de extrema-direita. Assim, importa salientar que além deste ano, há que celebrar abril todos os dias, a todas as horas. E celebrar abril terá sempre de ser mais do que picar o ponto e descer a Avenida a horas certas. A celebração da nossa liberdade e do que ela nos oferece implica um compromisso coletivo incondicional para com a sua defesa intransigente. Só espero que saibamos honrá-lo. Só espero que, se for preciso, saibamos o caminho para casa.