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Semana de 4 dias nas universidades: ideia “populista”? Já existe? Ou é mesmo preciso “reorganizar” o ensino?

Estudantes pedem uma mudança na forma como se olha para a carga horária no superior, mas há quem alerte que a possibilidade de uma semana de quatro dias já existe e que é preciso “respeitar Bolonha”. Ministério diz que universidades têm “autonomia” para decidir, mas a Federação Académica do Porto, que fez a proposta, insiste que processo seja encarado como “prioridade política”

Miniseries/Getty Images

Menos horas em sala de aula, usar novos métodos de ensino e dar espaço aos estudantes para ocupar um dia livre com outras atividades. Esta é a proposta da Federação Académica do Porto (FAP), que sugere um projeto–piloto de semana de quatro dias de aulas nas universidades já a partir do primeiro semestre do próximo ano letivo.

A proposta, enviada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, quer combater as “cargas horárias excessivas” e melhorar um "sistema de ensino do século passado". A FAP pede que a forma como se assume a carga horária no ensino superior mude, existindo “uma necessidade de olhar para os métodos de aprendizagem e adaptá-los às necessidades dos estudantes que chegam hoje”, explica Ana Gabriela Cabilhas, presidente da FAP, ao Expresso.

Mas vamos por pontos. Que proposta é esta, o que defende e o que pode implicar?

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O que sugerem os estudantes do Porto?

Acima de tudo, pede-se a “redução da carga horária em contexto de sala de aula”. Ana Gabriela Cabilhas aponta para as 21 horas semanais o tempo médio ocupado pelas aulas — Portugal estará entre os países europeus com maior carga horária nas universidades, explica —, com alguns cursos a subir este número para as 22 ou 24 horas.

Junta-se a este tempo as horas dedicadas ao estudo, num total estimado pela FAP de cerca de 41 horas semanais de trabalho. “Alerta-nos”, diz esta dirigente associativa, quando coloca os números em contraste com outros países europeus: “As médias de 16 a 18 horas da França, Bélgica e Países Baixos, as 14 a 15 horas do Reino Unido e Irlanda e as 10 horas da Suécia”.

Esta redução surgiria acompanhada de “um dia livre comum” nas universidades, em licenciaturas e mestrados integrados (2.º, 3.º ou 4.º anos). O dia serviria como “estímulo ao desenvolvimento de atividades transversais”, como a participação em atividades desportivas, culturais, associativas ou voluntariado.

A FAP pede também que se promova a “inovação pedagógica através de novos métodos de ensino-aprendizagem”, incluindo o recurso a ferramentas digitais mais modernas, “muitas vezes diabolizadas”.

Estão também em cima da mesa a formação para professores sobre métodos de ensino e a valorização do envolvimento de estudantes através do reconhecimento de créditos no suplemento ao diploma.

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Porquê esta “reorganização” do ensino?

“Nem tudo na pandemia correu mal”, começa por dizer Ana Gabriela Cabilhas. Porquê esta referência? A presidente da FAP destaca o aumento na utilização de ferramentas digitais desde a altura em que o ensino teve de se adaptar às restrições da covid-19, sugerindo uma resposta pós-pandémica que passe pela “adaptação dos modelos de ensino para que sejam híbridos”, respondendo a exigências dos estudantes de hoje, “muitos deles nativos digitais”.

O tempo de contacto entre professores e alunos deverá tornar-se “mais dinâmico, estimulando e motivando os estudantes”.

Outra das razões é o aumento dos casos de burnout entre as camadas mais jovens. “Chegam-nos relatos que nos dizem que os poucos momentos de descanso viram momentos de ansiedade”, conta Ana Gabriela Cabilhas, “daí a associação à carga horária específica e ao impacto que isto tem na saúde mental dos estudantes”.

Mas a semana de quatro dias na universidade “já existe”, não?

Como vários leitores e seguidores do Expresso nas redes sociais notaram quando publicamos a notícia original desta proposta, tecnicamente algo assim já existe. Vários e várias jovens explicaram, através de comentários e mensagens, que “isso já é assim na maior parte das universidades portuguesas” ou que as semanas “já só têm 4 dias” pelo menos “em muitas faculdades”.

Isso neste momento já é possível. Os alunos já não têm aulas todos os dias”, considera Pedro Rosário, professor no doutoramento de Psicologia da Educação da Universidade do Minho. Em muitos casos, “a carga curricular é reduzida e [os alunos] têm bastante tempo livre nesse sentido”.

Depois, “o resto do tempo é trabalho pessoal, mas com janelas temporais muito abertas em que as pessoas o podem gerir como desejam”, explica ao Expresso o docente, cuja investigação é centrada no estudo do impacto das dimensões cognitivo-motivacionais, emocionais e sociais no sucesso escolar dos alunos.

Essa diminuição das horas de contacto entre professores e alunos, que a FAP pede que sejam reduzidas, foi introduzida nas universidades portuguesas com o processo de Bolonha, assinado em 1999 — permite o reconhecimento mútuo de graus e a sua equivalência e outras qualificações do ensino superior entre vários países europeus, entre os quais Portugal —, que é preciso “respeitar”, explica Pedro Rosário. “Bolonha vem para tornar mais flat a carga de trabalho e evitar picos de trabalho insuportáveis. Antigamente, era tudo uma montanha russa”.

“É importante que exista uma dieta adequada entre as horas de aulas e as de trabalho pessoal. Isso pode ser feito de forma a que exista um dia livre e isso parece-me interessante (…). O esquema como está organizado não impede essa solução, é simplesmente uma forma de organização, que já existe em muitos casos”, menciona o docente.

“Temos um compromisso com Bolonha em que creditamos no sistema de créditos ECTS. Numa semana de quatro dias, os créditos vão ter de se manter e ser distribuídos pela semana. (…) Parece-me um pouco populista juntar isto à questão dos quatro dias”, considera o professor Pedro Rosário.

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Mas será que as tais semanas sem aulas e trabalho todos os dias funcionam assim e mesmo para todos? Os picos de trabalho deixam de existir?

Os estudantes do Porto contrapõem: “A semana de quatro dias é uma realidade em algumas instituições, não é algo generalizado”. Acontecem, na maior parte, “devido a uma condensação dos horários, com sobreposição e sequência de aulas, o que acaba por tornar o tempo em sala de aula pouco otimizado”, dizem.

“A nossa proposta não é apenas espremer a jornada de cinco dias nesses quatro, mas passa pela redução do tempo de contacto e de otimizar o tempo na sala de aula, pelo que é importante olhar para a organização do horário semanal”, refere Ana Gabriela Cabilhas.

Contudo, reorganizar a fundo as horas de ensino estabelecidas em função do atual sistema de créditos ECTS (cerca de 60 horas para contacto professor-aluno e 100 para trabalho autónomo em cada semestre) “implicaria alterar Bolonha” e isso “já é outra história”, “complicada”, e que “não pode ser decisão unilateral de uma universidade”, argumenta o professor de Psicologia da Educação.

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Mas também existem trabalhadores-estudantes, com menos desse “tempo livre”. Beneficiariam com esta medida?

Na possibilidade da sua aplicação, é provável que sim. A FAP chama atenção para estes casos: “os trabalhadores-estudantes foram os que mais notaram vantagens” no modelo de ensino mais híbrido que se viu implementado nos últimos anos.

“Esta adaptação seria muito importante para podermos ter um maior número de trabalhadores-estudantes”, diz Ana Gabriela Cabilhas. Segundo dados do Eurostat, revelados em agosto de 2022, Portugal está entre os dez países europeus com uma percentagem de trabalhadores-estudantes mais baixa. São cerca de 10% os jovens entre os 15 e os 29 anos que estudam e trabalham, abaixo da média da União Europeia, situada nos 23% — quase um quarto. “O elevado número de carga horária contribui para estes números”, acrescenta Cabilhas.

O objetivo não é promover condições em que os jovens precisem de trabalhar para estudar, clarifica a representante do organismo estudantil, mas sim ajudar quem o faça e, também, incentivar pessoas que já estão no mercado de trabalho e queiram ingressar no ensino superior a poder fazê-lo. Para esses, “é preciso criar condições de frequência, para que consigam conciliar a vida laboral com a frequência académica”.

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Ministério põe-se de parte: universidades têm “autonomia”

Segundo a FAP, a avaliação do projeto-piloto terá de ser através de “autoavaliação em cada universidade”, com a ajuda de estudantes e professores e até do próprio Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, que integraria uma comissão de acompanhamento ao lado de outras representações.

Questionado pelo Expresso, o ministério, a quem a FAP endereçou a proposta, põe-se de parte. A avaliação do assunto é remetida para as instituições de ensino superior, que têm “autonomia científico-pedagógica” e “maior capacidade para avaliar a pertinência dessas propostas e a sua contemplação numa reformulação da organização dos tempos letivos”.

Ana Gabriela Cabilhas considera, porém, que “é importante que a inovação pedagógica e a valorização da aprendizagem” sejam alvo de acompanhamento por parte do ministério e insiste que o processo seja encarado como uma “prioridade política”.

“Isto é importante para se reconhecer a realidade. Acreditamos que depois estarão todos mais disponíveis para a mudança. (…) E as instituições de ensino superior não podem ficar para trás neste campo. Temos um sistema de ensino do século passado”, justifica.

Concorda com uma semana de quatro dias nas universidades portuguesas? É preciso reorganizar o ensino superior? O seu caso contraria a ideia de que já existe “tempo livre” para os estudantes? Envie-me a sua opinião por e-mail.