Nos últimos anos, a França teve sempre quatro ou cinco representações a concurso em Berlim. Em 2010, apenas duas: "Mammuth" (cem por cento francês) e "Rompecabezas" (co-produção franco-argentina). "Mammuth" foi assinado pela dupla Benoît Delépine e Gustave Kervern. Vêm ambos da TV. O ambiente é cómico e um bocado grotesco, nem tanto pelas personagens e pelas situações em si, mas pela qualidade da imagem, saturada de cor e de grão: visualmente, "Mammuth" é o oposto da beleza estonteante de "Honey", do turco Semih Kaplanoglu. A fealdade, para os franceses, é uma questão de estilo.
Gérard Depardieu, versão Obélix
Depardieu, que dispensa apresentações e aparece no filme de cabelo comprido, já foi Obélix pelo menos três vezes. A sua figura em "Mammuth" recorda a personagem de Uderzo e Goscinny. "Mammuth" é um road-movie sobre um fulano que passou a vida a trabalhar num matadouro. A mulher trabalha num super-mercado. Chegada a reforma, ele nota que não tem qualquer papel a provar que descontou para a caixa. É um desastrado.
Monta-se na sua moto alemã dos anos 60 (uma relíquia que dá título ao filme e à personagem) e parte à procura dos seus antigos patrões, de um bar a um velho circo ambulante, à procura da papelada que lhe possa dar garantias. A história tem a sua piada, mas não se acredita.
Miss Ming
Há cadáveres na vida do motoqueiro sexagenário e melancólico. Um acidente de moto vitimou a sua antiga paixão, que entra pelo filme quando lhe apetece, como um fantasma (uma Isabelle Adjani gore). A mulher do motoqueiro (papel de Yolande Moreau) mostrará ser dona de casa destemida.
Mas a personagem mais estranha é a sobrinha meio tonta que o herói encontra pelo caminho, interpretada por uma tal de Miss Ming. De resto, olhando para o tio, ela tem a quem sair. "Mammuth" caminha o filme todo com um palmo acima do solo. É insólito, ingénuo, tem incrível cara de pau: o 'ovni' desta Berlinale. Pena ser tão feio.
María del Carmen
Quem também vive com um palmo acima do solo é a heroína do argentino "Rompecabezas" (que significa 'puzzle' ou 'quebra-cabeças' em espanhol), primeira longa-metragem de Natalia Smirnoff.
A protagonista (papel de María Onetto), mãe de família da Buenos Aires suburbana, chama-se María del Carmen. É senhora discreta e educada. Passou a vida a cuidar dos outros, sem grandes sonhos e nenhum tipo de realização pessoal. Descobre na montagem de puzzles um passatempo e fica obcecada pela arte. É muito profissional no ofício e desenvolve técnica apurada.
O resto da vida é uma modorra sem fim, mas quando ela se atira aos rompecabezas esquece tudo o que está à volta. Um dia, descobre que há quem faça concursos de puzzles. E encontra uma mensagem de 'socorro' de alguém que procura parceiro(a) para a prova nacional, que levará os vencedores aos mundiais da Alemanha.
María del Carmen encontra Roberto (Arturo Goetz). Solteiro, sofisticado e rico, o 'puzzle-maníaco' é para ela muito mais do que um sonho de pretty woman: trata-se de alguém que lhe pode dar a oportunidade de deixar uma vida resignada e medíocre.
A marca amarela
Filme cândido? Sim, o trabalho de Maria Onetto provoca simpatia. Ela tem ar de cachorro abandonado. O problema é que não sentimos que haja mundo à sua volta: e esse mundo é todo amarelo. Filmado com câmara à mão e em grande plano. E a simpatia transforma-se em enjoo.
É provável que Natalia Smirnoff, ex-assistente de Lucrecia Martel, tenha querido separar-se das ficções contemporâneas, formalistas e solenes do cinema argentino actual. Mas não é pela beleza que se aconselha este filme de cineasta com nome de vodka.
Mammuth (França) de Benoît Delépine e Gustave Kervern (Selecção Oficial - Competição)
Rompecabezas (França/Argentina) de Natalia Smirnoff (Selecção Oficial - Competição)
Mais informações no site oficial do Festival de Cinema de Berlim 2010.