O riso dos alarves encheu o ar de álcool, cigarros e frases de três palavras sem concordância possível. Nas televisões, em ruído constante, jornalistas artisticamente penteados e bem vestidos assomavam de minuto a minuto com mais pormenores sobre os progressos da comichão ligeira de um político «fashion». Outros relatavam a aproximação da data do concurso Quem Quer Ser o Mais Banal. Os livros eram deitados para a lama por gente rancorosa ou apenas por já não se saber para que serviam papéis um dia pintados com tinta. Tudo parecia perdido e o gelo crescia sobre os últimos olhos brilhantes de inteligência. Só se acreditava no entorpecimento do espírito, por nada parecer haver para lá dele. Uma criança observava um grupo de adultos hipnotizados pelo ecrã de uma televisão. Subitamente, começou a rir e num gesto tão proibido que não permitiu reacção arrancou da tomada o fio que alimentava o aparelho. Fez-se silêncio e só depois piscaram os olhos repetidamente, sem saber onde estavam. E, quando olharam à procura daquele que os trouxera das trevas, já o não avistaram, porque corria agora para o que restava dos campos, levando pela mão novas pessoas. E ali, no meio do frio, deu-lhes a cheirar as árvores, os ribeiros e a brisa que corria dos montes esquecidos. E, quando as narinas de todos se abriram e procuraram por ele, pareceu-lhes que tinha partido.
Outros, ainda, o sentiram no ouvido, a murmurar histórias antigas, que costumavam ser contadas de pai em filho. E aí perceberam que pouco do que acreditavam era verdade. Ou que tinha de ser assim.
E depois de todos começarem a ver, a ouvir, a cheirar e a sentir aperceberam-se de que a criança que tinha começado a rir das Coisas Absolutas tinha as suas próprias caras. E que, apesar de a névoa continuar baixa, um suave clarão de luz se tinha voltado a erguer.