ARQUIVO Campeonato Nacional da Língua Portuguesa

Muito mais que simples 'matador de gralhas'

No 'Diário de Notícias', onde Ayala passou mais de 40 anos a rever textos, a censura fazia-se entre portas.

Autodidacta e obstinado pela leitura, Guilherme Ayala Monteiro foi, ao longo de mais de 40 anos, um exímio profissional dedicado à revisão de textos. É uma referência nacional. Diz que lhe falta formação académica - completou o antigo 7º ano do liceu -, mas sobra-lhe a capacidade de tratar intimamente o português e detectar falhas em textos para publicação. "Está a ver, não se devem deixar linhas e letras penduradas, ou páginas só com três linhas", refere, exibindo as provas de um livro, empilhadas sobre a secretária da sua casa, em Queluz. Um no meio de tantos outros, também gramáticas, prontuários e dicionários, arrecadados em inúmeras estantes, e consultados sempre que surgem dúvidas quando está a "matar gralhas". A expressão não é sua, mas apropriou-se dela com a naturalidade que o caracteriza. Ouviu-a vezes sem conta na redacção do 'Diário de Notícias', onde trabalhou durante 40 anos. Saiu em 2000, mas continua a exercer a profissão a que se entregou em 1956, quase por acaso, quando ainda estudava.

Hoje trabalha para a editora Casa das Letras, mas o seu percurso regista passagens pelo 'Diário Ilustrado', 'Diário Popular', 'Época', Bertrand (onde esteve 20 anos), Círculo de Leitores e Editorial Notícias. Afirma que nunca sentiu na pele a pressão do lápis azul, até porque, no 'DN', "a censura fazia-se internamente". Mas recorda episódios vividos no extinto 'Diário Popular', onde as provas passavam todas pelos Serviços de Censura.

"Antes do 25 de Abril era muito complicado ser jornalista em Portugal", desabafa, e garante que, então, "era fácil ser revisor". Apesar de mais moroso, e de exigir a intervenção de tipógrafos e linotipistas, o trabalho de revisão era muito rigoroso e feito a "quatro mãos": "Enquanto um lia, em voz alta, o outro ia seguindo o texto original, trocavam-se impressões e o jornal era lido de uma ponta à outra".

Ayala relembra gralhas com piada, publicadas na imprensa nacional, às vezes por "malandrice". Recorda um anúncio de colchões, onde a ausência do segundo 'c' gerou confusão: "O anunciante ficou contentíssimo e disse que nunca tinha vendido tantos colchões", graceja. E o próprio cardeal Cerejeira foi alvo de chacota quando num jornal se asseverou que "Sua eminência experimentara sensíveis senhoras", em vez de melhoras.

A tipografia do 'DN' chegou a empregar 300 pessoas. Mas o fim da era do chumbo vaticinou mudanças drásticas no processo de revisão. A informatização das redacções obrigou à redução das equipas de «copydesk»: no 'DN', dos 20 elementos dos anos 90, passou-se aos 4 de hoje. O mesmo aconteceu noutros jornais.

Ayala Monteiro encara o futuro com alguma desconfiança e pessimismo. Face à extinção do que foi a verdadeira escola da Imprensa Nacional e à restrição de revisores nas redacções, interroga-se: "Onde é que a nova geração vai aprender e ganhar tarimba?"