ARQUIVO O que a censura cortou

Mensagem de Ano Novo de Américo Tomás

Proibidas a coluna de temas militarese notícias da prisão de Santa Clara Gomes e do processo à morte de Ribeiro Santos.

José Pedro Castanheira

Não assinada, mas da autoria de Marcelo Rebelo de Sousa, a coluna 'Portugal Político', na pág. 2, levou apenas um corte. Era uma citação da mensagem de Ano Novo do Presidente da República: "Devo ainda referir que circunstâncias várias, para que, felizmente, não concorri, fizeram diminuir a minha movimentação e o número de presenças em cerimónias inaugurais e comemorativas. Mesmo assim não estive demasiadamente parado". Américo Tomás "dixit". Menos sorte teve uma caixa na mesma página, assinada por L. Coesus e que sofreu cinco golpes. O autor concordava com o Chefe de Estado "quando enuncia que cada vez será mais necessário contactar com o povo. Apesar de atónito e estonteado".

A homília do bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, passou incólume. A única rasura foi no texto de apresentação, que referia que a paz, "e portanto a guerra", depende de todos.

O artigo de opinião de Humberto Lopes levou um valente risco azul. Baseado nas estatísticas internacionais, concluía que "pelos números da FAO, estamos considerados na cauda dos países africanos".

Quatro textos sobre Moçambique levaram, todos eles, um corte. Num, revelava-se que "a proporção de médicos por habitante é de um para 60 mil, estando por isso o Governo provincial decidido a contratar médicos estrangeiros". Wiriamu continuava no índex. Mesmo quando se lembrava que Kaúlza de Arriaga abandonara Moçambique "após os conhecidos incidentes de Wiriamu". Ou quando, nas palavras cruzadas, se aludia a Tete, a zona onde ocorrera o massacre.

Da pré-publicação do livro do novelista peruano Manuel Scorza, 'Rufam Tambores por Rancas', foram riscadas as expressões "os testículos", "putas" e "um formidável fornicador". A mesma 'chapa 3' foi aplicada a mais quatro textos. A uma carta de Vasco da Gama Fernandes. À notícia da capa sobre a crise dos combustíveis. "A hipótese de proibir a circulação ao domingo não está totalmente arredada. É pouco provável, todavia, que até ao fecho da caça tenha qualquer viabilidade de concretização". Aos seus efeitos em Angola, cujo governo "mantém negociações com o mercado internacional, tentando trocar petróleo bruto por combustível". E à crónica bolsista. "Para quê tanto medo, tanto receio, tanta inércia?" Ao comentário congénere de Vicente Marques foi aplicado um golpe duplo. "Quando há fuga de informações, as empresas já se nos têm queixado de sofrerem represálias das autoridades governamentais. Francamente, até nos sentimos de novo na escola primária com queixinhas, reguadas, etc.".

Inteirinhas para o lixo foram três notícias. A primeira, foi a habitual coluna militar. "A actual situação dos oficiais do Exército oriundos do Quadro de Milicianos e os do Quadro Especial de Oficiais (...) tem levado aqueles oficiais a promoverem uma série de exposições, no sentido de lhes serem reconhecidos os direitos adquiridos por força da legislação em vigor. Porém, até ao momento, nada obtiveram". A segunda, foi a reunião do ministro do Interior com dirigentes da SEDES. "Supõe-se que tenha sido abordada a situação do dr. Henrique de Santa Clara Gomes", ele próprio ligado à SEDES. A notícia não dizia, mas Santa Clara Gomes fora preso. A terceira, foi o arquivamento do processo contra o agente da DGS que assassinou o estudante Ribeiro dos Santos. "Esta medida processual fica a dever-se ao facto de a tese sustentada pelo patrono do agente, dr. Pedro Cabrita, de invocação da legítima defesa, haver sido acolhida no relatório do juiz do Tribunal Militar".

Uma homenagem, no Brasil, a Rui Luís Gomes foi de tal forma desvirtuada que a notícia ficou na gaveta. Candidato oposicionista à Presidência da República em 1951, Rui Luís Gomes "viria a ser destituído das suas funções docentes da Universidade do Porto exilando-se no Brasil".

A manchete da edição de 5 de Janeiro de 1974 era o governo de Arias Navarro, em Espanha. O novo gabinete integrava "pessoas que até veriam com bons olhos um aceleramento da evolução do regime português no sentido liberalizante".

O balanço do ano internacional levou três facadas. Saudava o Vietname, "uma vitória da vontade de uma nação", que fez cair "o mito da 'invencível América'". E não esquecia "a profunda honestidade de Allende".

O título sobre o 15º aniversário da revolução cubana foi proibido. Em vez de "A Revolução está hoje mais forte do que nunca", saiu "Cuba, ano XV".

Saudação a marechal nazi

A secção Gente tentou publicar um documento "histórico". Era um abaixo-assinado das mais ilustres figuras da Madeira,

a saudar o marechal von Bomberg, que em Outubro de 1937 visitara incógnito a ilha. Os signatários manifestavam a "admiração íntima e profunda que sentem pelo grande povo alemão" e exprimiam "a maior solidariedade com a Alemanha nazi na sua luta nobilíssima contra o comunismo destruidor e ateu". Manifestavam-se ainda esperançados na "vitória do Nacional Socialismo". Respigado da 'Revista Portuguesa', de Março de 1950, foi proibido

Deturpado

Dos três cortes cirúrgicos ao editorial, dois foram amaciados. Onde se lia "Wiriamu" passou a ler-se "Moçambique". O jornal lamentava ainda o facto de não ter retirado textos cujo sentido o Exame Prévio havia "deturpado". Em seu lugar, saiu "deixado irreconhecível".