"Os Caminhos de Orpheu" (Biblioteca Nacional de Portugal) Uma capa da revista inglesa "Blast", acolhida em Portugal como "uma espécie de Orpheu à inglesa" (nela escreveram Ezra Pound e T. S. Eliot), uma carta de Mário de Sá-Carneiro a José Pacheco, pedindo com urgência a capa para o primeiro número da "Orpheu" (duas velas de cebo da Holanda com uma mulher nua no meio, sobre um fundo cor de burro quando foge, segundo a imprensa da época), uma carta de Fernando Pessoa a Camilo Pessanha convidando-o a participar no terceiro número da revista ("O meu pedido - tenho, reparo agora, tardado a chegar a ele - é que V. Exa. permitisse a inserção, em lugar de honra do terceiro número, de alguns dos seus admiráveis poemas" - excerto aqui transcrito com grafia atualizada), o "número Specimen" (entenda-se - teste) da revista "Contemporânea" (1922-1926), dirigida pelo mesmo José Pacheco, fotografias dos fundadores e colaboradores da "Orpheu", e o manuscrito de "Para os indícios de oiro", de Sá-Carneiro, poema publicado no primeiro número da revista.
A exposição, intitulada "Os Caminhos de Orpheu", inaugurou no final de março na Biblioteca Nacional de Portugal, em Lisboa, onde fica até 20 de junho. Encontra-se dividida em sete secções numeradas, e pretende, nas palavras do seu comissário, Richard Zenith, "iluminar os caminhos que deram origem à revista, outros caminhos que a cruzaram ou acompanharam, alguns caminhos de continuidade frustrada e os caminhos astrais trilhados no zodíaco".
Entre os documentos expostos estão fotografias, manuscritos, datiloscritos, retratos, documentos autógrafos, cartas e recortes de jornais. Numa das secções são exibidos os obituários de alguns fundadores da revista publicados em jornais da época, entre eles o de Fernando Pessoa, que diz assim: "Fernando Pessoa, um dos mais gentis espíritos que nos foi dado a conhecer, faleceu ontem. Não comungava nas nossas ideias políticas o delicado poeta de 'Mensagem', mas nem por isso a sua memória deixa de merecer estas palavras de homenagem". E, mais à frente: "Era um poeta, FP. Um poeta e não um fazedor de versos, dos muitos que enxameiam por aí, pejando as montras das livrarias".
"Depreston" (Courtney Barnett) Tem como título "Depreston" e é um dos "singles" do novo álbum, "Sometimes I Sit and Think, and Sometimes I Just Sit", composto por 12 faixas, lançado no dia 23 de março deste ano. Depois de "The Double EP: A Sea of Split Peas", dois EP reunidos, como aliás o nome sugere, Courtney Barnett volta a cair nas graças da crítica (e não só).
O site de música "Stereogum" considerou-o "álbum da semana" ("[Courtney Barnett] deu-nos um álbum para muito, muito tempo", lê-se na crítica) e no site "Pitchfork" foi acolhido como "melhor música nova". Mike Powell, colaborador do site, escreveu que "Barnett não tinha nada a provar, mas está a fazê-lo".
"O Crocodilo que Voa" (Luiz Pacheco) Quando questionado pelo semanário "Sol" sobre o livro com entrevistas suas que estaria para sair, Luiz Pacheco (1925-2008) respondeu: "Esse livro é uma merda! Isso é uma aldrabice. É bom para andar por essas pequenas editoras". Referia-se a "O Crocodilo que Voa", publicado em 2007 pela Tinta-da-China, e agora reeditado pela mesma editora. O livro, com organização e prefácio de João Pedro George, reúne entrevistas feitas por Carlos Quevedo e Rui Zink (uma das mais interessantes publicadas neste volume), Baptista-Bastos, Mário Santos, João Paulo Cotrim, Paula Moura Pinheiro, Rodrigues da Silva e Ricardo de Araújo Pereira, João Pedro George, Pedro Castro, Pedro Dias de Almeida, Ricardo Nabais e Vladimiro Nunes.
As entrevistas foram publicadas pela primeira vez em jornais e revistas num período de tempo compreendido entre 1992 e 2008. Escreve João Pedro George no prefácio que estas entrevistas "podem ser vistas como um prolongamento do confessionalismo que caracteriza a sua escrita, seja nos textos de ficção, seja na crítica literária, onde tantas vezes aproveitou para contar episódios da sua ampla e sacudida existência. Luiz Pacheco, o "escritor maldito", o "excêntrico", monta aqui "o espetáculo de si mesmo".
"Francisca" (Manoel de Oliveira) "Francisca" (1981) é o último filme da "tetralogia dos amores frustrados", que inclui ainda "O Passado e o Presente", "Benilde ou a Virgem-Mãe" e "Amor de Perdição". Manoel de Oliveira filme a partir do romance "Fanny Owen", de Agustina Bessa-Luís, a quem pediu que escrevesse "os diálogos para um filme cujo assunto seria Fanny Owen", escreve Agustina no prefácio à edição publicada pelo jornal "Público", integrada na extinta coleção Mil Folhas, acrescentando que este "não é um livro qualquer", mas um romance que foi conduzido até si de uma ideia que não lhe ocorreu a si.
Ancorado na relação entre Fanny Owen, o marido José Augusto Pinto de Magalhães e Camilo Castelo Branco (este último recordará durante largos anos os seus "olhos muito afastados, os bandós dum castanho saibrento, muito claro"), o romance tem como pano de fundo o Porto oitocentista, decadente e burguês, que acolhia os morgados do Douro desejosos de escapar ao provincianismo de Trás-os-Montes."Francisca é a comprovação de que Oliveira está na posse de uma coisa raríssima em cinema: um sistema ficcional, pessoal e coerente, sistema assente em textos máximos e encenações mínimas, criando um universo depurado e rigoroso, uma frieza que oculta inominados vulcões, espasmos, paixão e morte", escreve Jorge Leitão Ramos, em "Dicionário do Cinema Português 1962-1988", publicado em 1989.
E no fim, a boa notícia: "Francisca" vai ser exibido na próxima segunda-feira, dia 6 de março, na Cinemateca.
"Travessa da Praia" (Inês Dias) *publicado em "Voo Rasante", antologia de poesia contemporânea
Tudo é margem. Eterno chama o mar. Gottfried Benn
Foi antes de qualquer poema. O rio, ao fundo, não era o da minha aldeia, mas dividíamos o mundo sem saber ainda de Tratados, de um lado a nossa soleira, de outro a da menina que parecia um anjo e, garantiam as vizinhas, estava de morte marcada.
Jurávamos não travar, não negar a recompensa ao vencedor, e descíamos depois pelos carris, com a bicicleta testando uma vocação precoce para a queda de que nos protegia o olhar das avós - ao menino e ao borracho... Um dia disse em voz alta as saudades da praia e murmuraram-me ao ouvido, como se fosse um búzio malicioso pousado na calçada. Devolvi um sim: ele abriu o fecho das calças para urinar atenciosamente na areia das obras, onde escrevemos castelos até à hora do jantar, anunciada pelo passeio manso da Melita, a cadela do Sr. João
Agora sei que a Travessa da Praia tem passeios em vez de margens e perdeu a memória dos seus barcos. A menina que parecia um anjo ficou loira e prosaica, sobreviveu. A mãe guarda debaixo da cama o caixão que lhe encomendara, branco e pequenino como o passado. Eu continuo a descer.