Cultura

“Lisboa deixa a bitola muito elevada para os que vierem depois”: o balanço de uma Feira do Livro que ainda não acabou

Em Buenos Aires, onde a 48a edição da Feira do Livro está a chegar ao fim, elogia-se a programação trazida de Lisboa, este ano a cidade convidada de honra. Joana Bértholo viveu cá há 15 anos e regressou com um romance no qual ficciona essa experiência

A Feira do Livro de Buenos Aires só acaba no dia 13 de maio, mas Ezequiel Martínez, o diretor-geral, já tem o balanço feito. Não o quantitativo - esse virá um pouco mais tarde - mas o outro, o da qualidade e daquilo que sobressaiu na edição deste ano. E o que sobressaiu é, para ele, sem margem para dúvidas, Lisboa. “Foi uma participação que deixa a bitola muito elevada para os que vierem depois. Trouxeram não só a literatura, mas a cultura portuguesa por inteiro, e isto é a primeira vez que acontece”, afirma.

O responsável elogia os eventos fora da Feira que fizeram parte da programação, como a mostra de cinema com a exibição de dez filmes de realizadores lusos e o ciclo de concertos que trouxe à capital Argentina figuras como Ana Lua Caiano, Rodrigo Leão, Expresso Transatlântico e o pianista Artur Pizarro (para um recital no mítico Teatro Colón). “Tratou-se uma aposta grande que renderá os seus frutos no futuro, nomeadamente em termos de autores que virão a ser traduzidos. Uma ponte entre duas cidades que continuará a existir e a ter circulação de ambos os lados”, garante Martínez.

O dia no stand lisboeta sofreu os efeitos da greve geral da véspera, que levou ao cancelamento de vários voos e determinou que alguns participantes chegassem com atraso. Por esta razão, a única atividade literária que se pôde realizar foi a conversa com a escritora Joana Bértholo. Ela, que está como peixe na água em Buenos Aires, mergulha no relato do que esteve por trás da escrita de “A História de Roma”, que recebeu o Prémio Literário Fundação Eça de Queiroz/ Fundação Millennium bcp 2023 e foi finalista do Prémio Oceanos 2023.

E por trás do livro está o ano em que Joana Bértholo viveu nesta cidade, como voluntária num projeto editorial chamado Eloísa Cartonera, do qual teve conhecimento enquanto investigava para o seu doutoramento em Berlim, empreendido após completar o curso de desenho na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. A pesquisar sobre as artes que surgiram durante o ‘corralito’ - a crise económica que estalou em 2001 e em que os depósitos bancários dos cidadãos foram confiscados - encontrou uma editora que elaborava livros a partir do material recolhido pelos ‘cartoneros’, pessoas que, com a paralisação financeira, fizeram da recolha de cartões para reciclagem o seu ganha-pão.

“Eu tinha 25 anos, estava a entrar na vida adulta. E foi incrível fazer essa entrada numa cidade como Buenos Aires, tão literária e ficcional”, diz Joana, que entre 2008 e 2009 trabalhou no bairro de La Boca, pitoresco e decadente, fazendo livros ao sabor de conversas mediadas pelo mate. Era “a europeia” que vinha com ideias de produtividade e otimização do tempo, e teve de aprender que o tempo por cá era vivido de outra maneira. “O mate era, na verdade, o mais importante”, admite hoje.

O Expresso viajou até Buenos Aires a convite da Câmara Municipal de Lisboa

Estava em Buenos Aires quando soube que o seu primeiro e “selvagem” romance - aquele que os amigos tinham lido numa edição de autor e considerado difícil - ganhara o Prémio Maria Amália Vaz de Carvalho. E quando a Caminho a contactou para o publicar, Joana não voltou a ler este livro, nem o virá a fazer. Sente carinho por ele, mas não curiosidade. Ao deixar a Argentina, voltou para Berlim com a noção de que essa liberdade que sentira ao escrevê-lo não era duplicável. Concluiu a tese de doutoramento e escreveu “Ecologia”, com recurso a muita investigação, ao longo de oito anos. Um romance sobre uma sociedade onde cada palavra é paga. “A História de Roma” surgiu como reação à pesquisa implicada no livro anterior: o desafio de ver um livro a sair de dentro. “Há o medo de não encontrar nada, de estar vazia. Mas então o primeiro que apareceu foi Buenos Aires”, recorda.

Vir à cidade com um livro que fala dela completa um “círculo mágico”. Do público ouviu-se a pergunta sobre quando será traduzido. Houve quem o quisesse comprar em português, mas os exemplares disponíveis para venda estavam já esgotados. A seguir à sessão com o público, Joana voou para outro pavilhão da Feira, ao encontro dos amigos que fez em Eloísa Cartonera. Quer saber o que andam a criar. Depois assistiria a uma mesa sobre Adolfo Bioy Casares na qual intervieram escritoras brasileiras e argentinas. Está no seu elemento.