Cultura

O Festival de Berlim encontrou o seu filme de consensos e de amores predestinados

“Past Lives”, estreia na longa-metragem de Céline Song, chegou-se à frente nas preferências. Philippe Garrel, que nunca fará um mau filme, reuniu-se à família em “Le grand chariot”. Já o ator alemão Franz Rogowski é a cara de “Disco Boy”: um tiro ao lado

“Past Lives”, de Celine Song

Numa altura em que a Berlinale se prepara para homenagear Steven Spielberg, as atenções do concurso viraram-se para uma primeira obra, “Past Lives”. Se existisse no festival algo parecido a um 'prémio simpatia', “Past Lives” - sem lhe tirar os méritos que tem - seria seguramente o contemplado. De facto, esta estreia na longa-metragem da americana de origem sul-coreana Celine Song (já havia sido notada no mês passado em Sundance) sabe repudiar tudo o que signifique conflito, levando a água ao seu moínho, na mesma linha de “Minari”, outro filme de sul-coreanos na América e êxito em 2020. Por baixo desta apreciação imediata, encontrará o espectador uma meditação sobre o desenraizamento, a saudade da infância, as decisões importantes que se tomam na vida e aquilo que esta seria se, a dada altura, cada um de nós tivesse tomado um caminho diferente.

Celine Song foi em tempos uma menina sul-coreana que emigrou com os pais para Toronto, mais tarde instalou-se em Nova Iorque e casou com um americano. Vinte anos depois de ter deixado a Coreia, marcou encontro num bar com um querido amigo que estava de visita à cidade, outrora o seu sweetheart da escola em Seul, e que ela já não via desde os 12 anos de idade. O marido acompanhou-a. E ela deu-se conta que ao longo da conversa que ia traduzindo, estava ali a oscilar não só entre duas línguas e duas culturas mas também entre duas dimensões tão diferentes da sua própria vida, como se aquele momento tivesse “qualquer coisa de ficção científica.”

A partir da realidade nasceram Na Young, a personagem da menina que nos EUA adotará o nome de Nora, e Hae Jung. Aos 12 anos estavam sempre juntos até à partida dela. Doze anos depois, chegaram a ligar-se pelo Skype, mas foi sol de pouca dura. E mais 12 passaram até ao encontro físico deles, na cena que abre o filme. Greta Lee, Teo Yoo e John Magaro no papel do marido ocidental são os intérpretes deste filme romântico que vai beber muito à melancolia do cinema de Richard Linklater.

Philippe Garrel com as filhas Léna (à esq.) e Esther no photocall de “Le grand chariot” em Berlim
Getty Images

Na língua coreana, há maravilhas como a palavra de inspiração budista “inyeon”, que define o relacionamento que uma pessoa mantém com o primeiro amor (e exclusivamente com esse amor) ao longo de toda a sua vida. “Past Lives” é uma homenagem a esta ideia, dos seus momentos emocionais mais felizes a certas imagens de cartão postal nova-iorquino com música doce em pano de fundo, quando mais se notam os seus lugares comuns estilísticos. É um filme impermeável à crueldade, por isso mesmo um encantador de audiências, e já tem distribuição americana assegurada pela A24, uma empresa decisiva para o cinema independente do lado de lá do Atlântico. Ninguém se admirará (num caso de divisão do júri em que seja preciso encontrar uma solução de recurso, por exemplo), se “Past Lives” for chamado ao palmarés do próximo fim de semana.

Garrel em família

O júri do concurso não precisa de ir muito longe para encontrar alternativas. O primeiro aspeto a salientar de “Le grand chariot” é que Philippe Garrel filmou desta vez a cores (sempre em película 35mm, de novo com Renato Berta na fotografia, mas a cores), algo que já não sucedia desde “Un été brûlant”, de 2011 (que não é de todo um dos seus preferidos). O segundo aspeto é inédito: Philippe nunca dirigira até agora os seus três filhos, todos eles atores, no mesmo filme: Louis, Esther (ambos da sua relação com Brigitte Sy) e Léna Garrel (da relação com Caroline Deruas). Louis e Esther são já caras frequentes do cinema francês, Léna nem por isso porque trabalha sobretudo no teatro e prefere o teatro ao cinema, tal como o seu avô, Maurice Garrel (1923-2011), pai de Philippe. Último dado biográfico do parágrafo: Maurice, para além do fabuloso ator de teatro e cinema que foi, trabalhou no início da carreira como bonecreiro, dando vida a marionetas de mão naquele tipo de espectáculos muito apreciados por crianças. E já o pai dele passara por essa experiência.

Ora, “Le grand chariot” é precisamente o nome do teatro de marionetas que o pai da história, papel de Aurélien Recoing, dirige com os seus três filhos no filme (interpretados pelos três filhos do cineasta) em Saint-Maur des Fossés, ali para os lados de Créteil, arredores de Paris. Têm uma trupe familiar que dura há três gerações. A avó, interpretada por Francine Bergé, ainda apoia a família. É ela a artesã dos bonecos. A mãe morreu há alguns anos mas a trupe continua a fazer os seus espectáculos ambulantes, mantendo a chama acesa.

Está Garrel a falar da sua própria vida e dos seus? Está e não está, como sempre, interlaçando a vida na ficção como é hábito no seu cinema. Nisto há notas que ganham enorme comoção, por exemplo, com a morte súbita do pai durante um dos espectáculos. Pensa Philippe no pai Maurice ou na sua propria mortalidade? E feito o luto do pai que morreu, quem na ficção dará continuidade à trupe?

Outro ponto forte da história vem da generosidade genuína que existe entre as personagens, em especial a de Pieter (Damien Mongin), o melhor amigo de Louis. É um pintor que não consegue singrar, ajuda os bonecreiros de vez em quando, acabou de ter um filho mas já se separou da mãe da criança. Está metido numa balbúrdia sentimental, é típico rapaz garreliano. Mas o filme aconchega-o.

Franz Rogowski em “Disco Boy”

“Le grand chariot” é um filme de felicidade. E de emoções partilhadas em família. Não é dos mais intensos de Garrel, longe disso. Não tem a força que este cinema costuma ter. Mas o segundo visionamento já está a quebrar parte do gelo. E filme de Garrel deve sempre ser visto duas vezes (pelo menos). Acertemos agulhas: não deixa de ser um dos melhores do concurso.

Franz Rogowski, um dos rostos desta Berlinale

A primeira vez que Rogowski impressinou com o seu rosto de outsider e aquele sotaque de sopinha de massa foi em “Transit”, de Christian Petzold, que como toda a gente sabe é um dos grandes cineastas alemães deste milénio (“Roter Himmel”, a nova obra, está guardada para o fim desta Berlinale). Para já Rogowski deu a cara por “Disco Boy”, estreia na longa-metragem de Giacomo Abbruzzese (Taranto, 1983), realizador italiano que já se distinguiu em inúmeros festivais (incluíndo o IndieLisboa) pelas suas curtas.

Para uma primeira obra, “Disco Boy” tem um dos mais fortes e sugestivos arranques dos últimos tempos. Aleksei é um rapaz bielorusso que aproveita uma entrada na Polónia para emigrar ilegalmente, quer chegar a França com um amigo, acaba a servir na Legião Estrangeira. Já feito soldado, mandam-no para a Nigéria para resgatar franceses que foram sequestrados por organizações separatistas do delta do Níger. Nesse rio trava o protagonista um combate de morte com um guerrilheiro negro que se tornará para ele um fantasma. Abbruzzese filma a cena com uma câmara de infravermelhos. Mas não é por causa dessa escolha que o filme, que até então estabelecera uma relação muito forte com o realismo, se põe a dada altura em busca de um onirismo ostentatório, autocomplacente, até que a falsificação vem à tona e só fica o estilo.