Cultura

Os ex-amigos

Uma crónica sobre o mundo tal como o desconhecemos, dos grandes temas da atualidade às questões insignificantes do quotidiano

Tenho um amigo que costumava dizer que não há ex-amigos: ou é amigo ou nunca foi. O problema é que tenho a impressão de que este meu amigo é, na verdade, um ex-amigo. Não nos tornámos inimigos, nada disso. Simplesmente, afastámo-nos. O que, a bem dizer, é ainda mais triste. É triste não saber se este amigo é ex-amigo. É triste a amizade não se ter transformado noutra coisa, embora perniciosa, digna de ser sentida e vivida. É apenas uma ex-amizade, qualquer coisa que perdemos sem dar conta, algo que se foi escoando pelo ralo da vida.

Mesmo que não seja um ex-amigo, teríamos ambos de reconhecer que já fomos mais amigos do que somos hoje. E isso é, em si mesmo, uma forma de ex-amizade. O fantasma da amizade de outrora, mais intensa e luminosa, com as suas partilhas, confidências, vergonhas comuns, projetos fracassados, figuras tristes, está sempre lá, não como reminiscência feliz, mas como barreira, um obstáculo cuja superação implicaria o reconhecimento do fim da amizade e o desejo de a reatar. E, se a avaliação que faço está correta, ambos preferimos o convívio esporádico com um fantasma à coragem necessária para aquelas duas tarefas.

Em geral, convencemo-nos que a amizade, ao contrário do amor, não precisa de ser cultivada, que uma vez arraigada no coração e no espírito nada a poderá destruir, nem os anos, nem a distância física, nem sequer o afastamento. E dizemos, com a convicção culpada de quem não perdeu tempo a cuidar da amizade, que quando encontramos o amigo que não víamos há anos é como se tivéssemos estado com ele no dia anterior. Queremos acreditar que a amizade é, assim, a nossa eterna reserva de amor, que não definha nem apodrece, mesmo que nunca lhe prestemos atenção. Que o reencontro com o amigo basta para reativar o sentimento adormecido, mas sempre vivo.

Por vezes, o reencontro é cruel. Além do fantasma da amizade passada, vemos como seguimos e crescemos em direções opostas e, se não existe um sentimento de traição, há sempre a sensação de que alguma coisa nos foi deliberadamente ocultada, de que fomos excluídos, ainda que com toda a delicadeza, da existência do amigo. Um exame honesto de consciência revelará necessariamente que também nós agimos da mesma forma, que também nós, a pretexto das dinâmicas internas da vida, fomos afastando o amigo sem um empurrão, sem um aceno vigoroso, apenas com um baixar de olhos, o sinal físico do fim da amizade.

As amizades que terminam com zangas ainda podem ser recuperadas porque a mágoa mantém vivos os sentimentos. As amizades que acabam sem estrondo é que não têm remédio. Esfumam-se. Evaporam-se. De vez em quando visitam-nos na qualidade de fantasmas. Desaparecem quando o ex-amigo se vai embora.