Ainda é cedo para saber que hábitos mudaremos, que gestos ficarão por recuperar. A distância física, a que hoje somos obrigados, poderá sobreviver por muitos mais anos, mais do que a própria pandemia? Mais do que o próprio risco de infecção? Os comportamentos de defesa que adquirimos prolongar-se-ão nas gerações futuras? E, na forma, como estas irão afirmar o seu corpo face ao corpo dos outros? Terão os corpos de se ajustar a outros desafios? Como aqueles que as alterações climáticas já sugerem para o futuro próximo? Até que ponto é que as nossas identidades digitais, tão usadas durante a pandemia, se irão sobrepor aos nossos corpos físicos?
A pandemia atribuiu ao corpo, e ao comportamento deste, um lugar no palco do mundo de uma forma que a dança já o vinha colocando há muito tempo. Poucas disciplinas terão, na verdade, pensado, de forma tão alargada e profunda, nos significados e limites do corpo (humano) na relação com outros corpos, do corpo na sua contínua transformação, do corpo em relação com o próprio corpo, e até na ausência do corpo, como a dança contemporânea pensou.
Sem o trabalho dos coreógrafos e de bailarinos, ainda que ancorados em corpos teóricos e filosóficos, a discussão sobre o que é o nosso corpo não teria, provavelmente, ido tão longe, nem teria tomado tantas e variadas formas, ganhando infinitas possibilidades de caminhos, destruindo normas sociais e políticas ou edificando novos sentidos e comportamentos.
Sintonizado com essas velhas questões do mundo da dança e com o momento de transição que atravessamos, por ordem da pandemia, o GUIdance regressou, este ano, decidido a ir além do questionamento, além do pensamento. A ambição desta edição passa por algo que o seu diretor, Rui Torrinha, chamou “Mundança”, fusão das palavras mundo e dança, que não é mais do que uma pequena palavra para aglomerar um desejo maior: “mudar o mundo pela dança”. Ainda que o objetivo pareça ambicioso (porque passar do pensamento à ação pode sempre levar mais tempo do que aquele que quem lança o repto gostaria), o GUIdance afirma o seu lugar de despertar sentidos e consciências que podem levar a novos gestos de mudança.
Até agora fê-lo através dos espectáculos de Sofia Dias & Vítor Roriz, de Peeping Tom, Moritz Ostruschnjak, Vera Mantero e Catarina Miranda, propondo visões que os nossos olhos já lêem de modo diferente, transformados que foram pela experiência da pandemia.
Neste sábado, o desafio de “mundança” toma forma através de um solo de Anastasia Valsamaki, de um debate aberto e de um espectáculo de Vandekeybus, no qual o coreógrafo belga conta com a colaboração do artista plástico Olivier de Sagazan
Em “Body Monologue”, de Anastasia Valsamaki, a apresentar às 18h30, no Centro Internacional de Artes José Guimarães, é o movimento orgânico que é contrariado, e às 21h30, no Centro Cultural Vila Flor, são os contornos do corpo que são dissolvidos, desafiados, transfigurados através da proposta concebida por Vandekeybus, cujo o título parece ter sido arrancado ao presente: “Hands Do Not Touch Your Precious Me”.
Entre os dois espectáculos, abre-se ainda espaço à reflexão como um debate sobre “Desfiguração e Transformação”, mediado por Claudia Galhós, na sala de conferências do Centro Internacional de Artes José Guimarães, às 16 horas.