São raras as vezes em que interpelo uma pessoa que admiro profundamente sem a conhecer. Uma das poucas vezes que o fiz foi em Veneza. Estava sentada no interior de uma loja quando entrou a Marina Abramović. Queria ver uns sapatos e sentou-se ao meu lado. Ali estive, a vê-la tirar os ténis que trazia e experimentar uns pares de sandálias, uma coisa prosaica, de pessoa normal, Veneza estalava de calor nesse dia. E eu ali, ao lado de uma das artistas que mais admiro no mundo, calada, a hesitar se lhe dizia alguma coisa, mas o quê, “Marina, gosto tanto do seu trabalho, tenho uma admiração profunda por si, imparável”? Podia ser. Mas de repente recordei-me de um facto, uma improbabilidade, e olhei para ela e disse-lhe: “Marina, olá. Temos um grande amigo em comum, o Julião Sarmento.” E ela iluminou-se e saímos para a praça de San Marco em conversa luminosa, o princípio de uma relação que se expressa agora por telefone, WhatsApp, texto, imagem e por outros encontros.
Os artistas estão noutro ângulo do mundo. É a partir desse sítio próprio que cada um deles se relaciona com tudo o resto e se acrescenta, munido da grande liberdade, pois a arte não tem regra, não tem domínio nem é dominável. Marina Abramović é um monstro de força, foco, vulnerabilidade e suavidade. Segui-a desde sempre, pois fascinava-me a forma como a componente performativa da sua expressão artística implicava, tantas vezes, o uso de artefactos já existentes, de escalas variadas, ou a criação de novos objectos e equipamentos, além do uso de materiais em estado bruto.