No universo da língua portuguesa, contam-se pelos dedos os autores que revelam coragem e audácia para testar verdadeiramente os limites da forma romanesca. Entre eles, destaca-se Ana Margarida de Carvalho, tanto pela hábil experimentação de novos processos narrativos como pelo luxo quase barroco da sua prosa. Em 2016, com “Não se Pode Morar nos Olhos de Um Gato” (Teorema), ofereceu-nos um verdadeiro prodígio literário, no qual um conjunto de personagens muito díspares — isoladas numa praia brasileira, entre uma falésia intransponível e o oceano onde se dera o naufrágio do navio negreiro em que viajavam — se transformam numa improvável “máquina comunitária”, capaz de sobreviver a tudo, muito à conta da capacidade de fixar e repetir as suas histórias. Agora, em “O Gesto Que Fazemos para Proteger a Cabeça”, a autora volta a propor-nos um tour de force arriscadíssimo, em forma de saga alentejana comprimida num só dia, entre “dois entardeceres”, ao longo de seis capítulos bastante extensos, cada um atravessado por uma única frase, labiríntica e cinzelada com minúcias de ourives. É, diga-se desde já, uma experiência linguística que exige muito do leitor — afastando-o à bruta da matéria anódina e pasteurizada da ficção comercial que pulula nas livrarias, produzida em massa e para as massas, já devidamente mastigadinha e pronta a deglutir — mas, uma vez ultrapassada a linha de rebentação da estranheza, vencida a possível resistência a uma voz que parece caótica e divagante, deparamos com os júbilos e deleites próprios, há séculos, da grande arte.
Em vez da praia emparedada e suspensa no tempo, esse locus horrendus de “Não se Pode Morar nos Olhos de Um Gato”, encontramos desta vez uma geografia mais difusa. Durante os anos da Guerra Civil Espanhola, de que vamos tendo ecos nas histórias de fugitivos republicanos, ora salvos e escondidos, ora entregues às autoridades franquistas, o território que emerge nas páginas deste romance é o da raia alentejana. Não a raia alentejana concreta, mas uma versão mitificada dessa paisagem agreste, submetida à inclemência tanto do clima como dos tempos históricos. Estamos então no final da década de 30 do século passado, sob uma atmosfera de miséria e abandono.
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