Fazer um filme com sonhos, memórias, uma imaginação selvagem, e em dueto: é este o ponto de partida de “Siberia”, em que Abel Ferrara se reúne uma vez mais a Willem Dafoe. Já perdemos a conta a quantos fizeram juntos. O primeiro realiza, o segundo interpreta. O segundo não é necessariamente um alter-ego do primeiro porque ambos deixam a pele no ecrã e refletem um pouco das suas vidas sem nos falarem diretamente delas. Este compartimento nada estanque entre realizador e ator - inseparáveis amigos dentro e fora do cinema -, entre ator e personagens, somados à presença, entre outros elementos, de Cristina Chiriac e de Anna Ferrara, mulher e filha do realizador, geram uma estrutura complexa como um labirinto. Falar de alter-ego não basta, é insuficiente para descrever o que se passa. Se em “Tommaso”, filme anterior de Ferrara, estávamos algures num diário privado e íntimo do realizador, em “Siberia” ficamos provavelmente mais próximos de Willem Dafoe.
O que é “Siberia”? Uma ficção sem bússola e porventura o trabalho de Ferrara mais próximo dos filmes autoreflexivos de Fellini. Também houve quem visse Lynch entre os planos. Uma autobiografia não declarada que, para o grande cineasta de Nova Iorque, significa um novo teste à ficção, não necessariamente com princípio, meio e fim. “Siberia” podia ser descrito como uma jornada metafísica ao âmago de um homem em busca de paz de espírito. Ele chama-se Clint (Dafoe), recorda o pai e as viagens de pesca que fazia com ele ao Canadá. Recorda a criança que foi (e é aqui que Anna Ferrara aparece). E é o próprio Dafoe, através da ilusão do campo-contracampo, que interpreta Clint e o fantasma do pai de Clint, algures numa taberna rodeada de neve que recebe escassas visitas - e nem todas vêm em paz. E também há mulheres, muitas mulheres, velhas, mães, amantes, filhas, um apelo do feminino. Apelo esse que conforta Clint no seu autoexílio?
Porque é que o filme se chama “Siberia”? Não há explicação, embora apareça quem fale russo. Se explicação há, ela só pode ser poética, porque este é também um estudo sobre o isolamento, uma viagem espiritual e mística em que os traumas não pedem licença para entrar. Nem o sobrenatural. Esta aventura selvagem, esta espécie de wrestling de Ferrara consigo próprio, em boa hora colocado na competição de Berlim por um festival corajoso, não deixa de ser comovente porque quem não rechaçar o filme, quem não lhe virar as costas (foi o que fez a generalidade da imprensa na Alemanha) começa a dar-se conta de que este é afinal o mesmo Ferrara de sempre, em luta com uma escuridão interior, mas à procura de paz, de uma humilde morada em qualquer lugar do mundo a que ele possa chamar de casa.
“Siberia” é um filme que não se dá a interpretações, é inútil tentar explicá-lo. Não é de deixar de lado a ideia de que Clint (personagem)/Dafoe(ator)/Ferrara (realizador) estão a atravessar um purgatório qualquer, primeiro na neve e rodeados de belos Husky siberianos, depois no deserto em que Clint se precipita para um oásis.
A sensação é a de que Ferrara está a meter todas as fichas que lhe restam em jogo. Ele já não pertence ao 'mercado'. Já não tem lugar no cinema exceto em festivais destemidos e graças a um punhado de financiadores e distribuidores que ãinda continuam a deixar-lhe a porta entreaberta. Ferrara vive hoje em Roma, faz filmes com pouco dinheiro e este é todo europeu, a América virou-lhe as costas e ele virou as costas à América. Está a fazer filmes literalmente com o que lhe sobra. É “Siberia” é assim, um filme de vidros partidos, como o “Morangos Silvestres” de Bergman. Em que Clint é uma espécie de Ulisses, não sabemos ao certo é de que Odisseia.
Em Berlim, Ferrara falou de um vídeo anónimo qualquer filmado nos subúrbios da Nova Iorque dos anos 90 em que um peixe falou um dia ao dono de uma peixaria. “Procura isso no Google, vais ver que descobres... Foi em 1994. É uma das primeiras coisas que se tornaram virais nos computadores... Ficou o mundo inteiro a gozar com o pobre homem.” Em “Siberia", também há uma cena com um peixe que fala. É um filme livre. Livre como um vírus, apetece dizer dele em Berlim. Há quem ponha a máscara e fuja dele a sete pés. Mas há também quem se tenha deixado infetar, ou então foi o vírus que atacou primeiro.